Segunda-feira Gorda era manifestação de destaque na programação | A TARDE
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Segunda-feira Gorda era manifestação de destaque na programação

Edições mostram que a denominação Festa da Ribeira passou a ser usada pelo jornal apenas na década de 1950

Publicado sábado, 08 de janeiro de 2022 às 06:00 h | Autor: Cleidiana Ramos* | [email protected]

Mais uma vez a Lavagem do Bonfim não vai acontecer em Salvador devido à pandemia de coronavírus. A limpeza do adro e escadarias da igreja realizada pelas baianas que saem em cortejo da Igreja da Conceição da Praia, em um trajeto de oito quilômetros, é o rito com maior visibilidade na Festa do Bonfim, uma das mais antigas devoções da capital baiana.  Com a dinâmica de inclui e grande visibilidade a Segunda-Feira Gorda depois separada em um evento específico chamado de Festa da Ribeira. 

Nas primeiras décadas das publicações de A TARDE não há referência à Festa da Ribeira, mas à Segunda-Feira Gorda apontada como a grande festa dentro da festa e com elementos como desfile de ranchos e ternos prolongando o ciclo natalino. Na edição de 19 de janeiro de 1915, na capa do jornal, duas imagens traduzem a edição daquele ano: em uma homens vestidos com terno aparecem em cima de um carro. Já a segunda mostra pessoas circulando no entorno de barracas armadas na orla.  

Um ano depois, o registro da Segunda-Feira Gorda realizado por A TARDE trouxe informações em linguagem mais próxima do humor. A descrição, no alto da capa, tem desenhos que indicam quais eram os personagens e atrações mais comuns na festa. Foram citadas a “Mulata Bahiana” com ilustração correspondente a uma mulher usando um longo vestido, torço em forma de laço, crucifixo no pescoço e segurando um pandeiro e a “Mulher do Doce”, que foi representada à frente do tabuleiro e com as vestes semelhantes, mas em formato mais simples, às usadas atualmente pelas baianas de acarajé. Elementos da festa, como o “Brasão de Armas”, a Lyra Popular, a Linha Municipal, que mantinha o sistema de bondes, e um violão em meio a traços que lembram o corpo de uma pessoa também foram apresentados.   

Tem textos em quadrinhas para denunciar problemas, como a má remuneração destinada aos servidores públicos. O desenho correspondente mostra uma menina e ao seu lado um homem esticando um dos bolsos vazios da calça que usa:  

“A menina do empregado público não vae a pe por não ter calçado/Seu pae não pode, ao menos contribuir, para o banquete do governador”. (A TARDE 17/01/1916, capa). 

Ilustrações descrevem a festa da Ribeira no jornal
Ilustrações descrevem a festa da Ribeira no jornal |  Foto: Arquivo A TARDE | 15.01.1961
 

Ternos

Na edição de 21 de janeiro de 1918, a Segunda-Feira Gorda foi descrita de forma ainda mais detalhada. O texto fez uma memória das comemorações no sábado quando aconteceram as apresentações dos ternos e ranchos. Desfilaram na Colina Sagrada os ternos da Cigana, da Estrela, Sol do Oriente, , Lyrio do Valle, Paz e Amor, Urubu Dandy e Arigofe. Os ranchos foram o do Robalo, Penicopeu, Petingó, Veado e Cachorro e Bloco Mamãe Sacode. 

Um relato de acidentes ocorridos durante a celebração, com predominância daqueles envolvendo o sistema de bondes, abre a possibilidade para imaginar o volume de público que circulava pelo Bonfim desde o sábado: 

“Às 19 horas de ante-hontem Aristo Matheus foi apanhado pelo estribo de um bonde, recebendo escoriações nos membros inferiores; às 23 horas Alfredo Gomes Vinhas caiu feriu-se num vidro de garrafa, na mão; às  7 horas de hontem Edgard Balthazar caiu de uma arvore, resultando a fractura exposta da perna esquerda; às 8 horas  Amando Dias da Costa caiu de um bonde nos Dendezeiros, ferindo-se no rosto; às 9 horas Manoel de Senna Guedes foi apanhado por uma parede no Xixi ferindo o nariz; às 10 30 minutos Ernesto Santos caiu de um bonde no Gazometro ferindo o lábio inferior; às 11 horas Anacleto Victorio Justo foi atropelado por um bonde no Canto da Cruz recebendo contusões por todo o corpo; às 12 horas Luiz Gama foi atropelado por um auto recebendo ligeiras escoriações; hoje às 7 horas Odilon Araújo, carteiro do Cabo Submarino, foi apanhado por uma parede no Xixi, recebendo um extenso ferimento na região frontal com deslocamento de pelle”. (A TARDE, 21/01/1918, capa). 

Lulu Parola

Em 1923, o jornalista Aloísio Lopes Ferreira de Carvalho (1866-1942) passou a integrar a equipe de A TARDE. Ex-diretor do Jornal de Notícias, político e ativista do movimento abolicionista ele usava o pseudônimo Lulu Parola e tinha como um dos assuntos mais constantes em sua coluna satírica a Segunda-Feira Gorda do Bonfim. Por meio de quadrinhas, Lulu Parola contava o seu encanto pela festa. 

“Querem saber? Contarei:/Fui p'ra saltar na Ribeira, que é onde, segundo a lei,/Mais ferve a SEGUNDA-FEIRA./O'carro partiu voando.../Pois, entre nós, abusando, O auto não corre, — voa! E ao cabo de quasi sete minutos, a "marinettl"/Largou-me na Madragôa... E tive assim que descer/E o resto a pé completar.../Que é que eu podia dizer/Quando é melhor não falar?”. (A TARDE, 21/01/1933, p.3). 

Em meio às descrições da festa, a crítica social estava sempre presente nas quadrinhas de Lulu Parola. Na edição de 1940 o tema escolhido foi a descoberta do petróleo no bairro do Lobato ocorrida no ano anterior. Os versos misturam os personagens da festa, elementos da cultura afro-brasileira e a potencialidade da nova riqueza: 

“Mulata de que me ufano, /Tens razão de estar contente/Senhor do Bonfim este anno/Te fez o melhor presente!.../Tinhas no teu Taboleiro/Especial conteúdo.../Faltava apenas dinheiro/Que é o mais gostoso de tudo.../Senhor do Bonfim então/Deu-te o dinheiro em petróleo.../Subiste de cotação/Estás quase no Capitólio!...

(...) Cahir num poço era outr´ora/Um desastre, um quebra- osso.../Toda a gente pede agora/A Deus-pra cahir num poço...

(...) O vatapá vae cahir/Da fama de melhor prato.../Todos estão a pedir o Mugunzá do Lobato!”. (A TARDE, 15/01/1940, p.2). 

A mudança 

Sem um rito religioso em meio à comemoração, a Segunda-feira Gorda foi ganhando independência em relação ao Bonfim. Com base na análise das coleções de A TARDE a separação apareceu mais nítida a partir de 1950. Na edição de 16 de janeiro daquele ano o título de uma reportagem já anunciava que após o Bonfim chegou a hora da Ribeira. 

“A Ribeira está pegando fogo. Desde cedo, de acordo com a tradição, os fieis do Senhor do Bomfim, cuja festa se encerrou, ontem demandaram à penísula para dar vasão à sua alegria. Nem a crise, a falta de dinheiro, nem o calor causticante, nada conseguiu reduzir o entusiasmo do nosso povo nas festas do seu padroeiro. Quando a nossa reportagem se deslocou para a Ribeira, que é o ponto central dos festejos da "segunda-feira gorda", milhares e milhares de outras pessoas já se haviam antecipado. Tambem, pelo caminho, novos contingentes se deslocavam, usando todos os meios de transporte: a pé, de bonde, de onibus, carro ou lotação numa fieira interminável de veículos”. ( A TARDE 16/01/1950, p.2). 

As fotografias que acompanham a reportagem mostram mulheres comendo frutas, especialmente melancias que, segundo a descrição do texto era uma forma de tentar amenizar os efeitos do calor. O consumo de frutas ficou marcado como característica da Festa da Conceição da Praia. Esta informação nos dá mais elementos para acompanhar as transformações nas dinâmicas da Segunda-feira Gorda. 

O texto também destaca como na festa testava-se os sambas para o Carnaval: 

“Já na rua Lelis Piedade, as batucadas davam a nota, lançavam aos ares o ritmo alucinante do samba e do batuque. E a cuica roncava, o tamborim marcava o compasso juntamente com o agogô. Dentro esse ritmo, sobressaiam vozes, em todos os tons, cantando os últimos sucessos do Carnaval que se aproxima. Brincavam moços e velhos, pretos e brancos, pobres, ricos e arremediados. Conseguimos, então, anotar o samba cantado, na ocasião, João Paulino, cuja letra, é a seguinte: “Me diga! o que é que é/que vai de cá pra lá/ de lá pra cá e e fica em pé? (bis) Gorduchinho. pequenino quasi calvo/desta vez eu acertei no alvo./João Paulino/que balança mas não cai/eu sou pobre, pobre, pobre e ele é meu papai. Todos estavam alegres, despreocupados. Todos brincavam, a despeito de tudo, principalmente do calor que provoca verdadeiro derretimento do corpo e que nos faz suar por todos os poros, molhando-nos não só a camisa mas toda a roupa”. (A TARDE, 16/01/1950, p.2). 

A partir desse período, na cobertura de A TARDE, a Segunda-Feira Gorda passou a ser chamada mais frequentemente de Festa da Ribeira. De reduto do samba de roda feito, geralmente, de improviso com os grupos se juntando ao longo da orla do bairro, a festa chegou à década de 1970 embalada pelos trios elétricos, ganhou fama de violenta e foi definhando e perdendo visibilidade. 

Atualmente, há ainda quem passe o dia na Ribeira, na segunda-feira após o encerramento da Festa do Bonfim para manter a tradição de tomar cerveja, comer cozido e assim festejar, mesmo que só em meio às lembranças do passado, o prolongamento até onde é possível dos festejos na Colina Sagrada. São manifestações como essa que fazem da devoção ao Senhor do Bonfim uma manifestação inesgotável de criatividade, descarte e incorporação de novos elementos.   

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE. Confira mais conteúdo de A TARDE Memória no portal A TARDE e em A TARDE FM.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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