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A Tarde Memória

Por Priscila Dórea*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 02 de agosto de 2025 às 8:05 h | Autor:

Solar do Unhão: como um símbolo colonial abraça a modernidade

Museu de Arte Moderna da Bahia funciona há 65 anos no casarão que já foi residência de nobres, paiol e quase foi derrubado em reforma urbana

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Conjunto Arquitetônico do Unhão passou por grande restauração em 1963
Conjunto Arquitetônico do Unhão passou por grande restauração em 1963 -

Memória viva de parte da história de Salvador e relicário colonial, o Solar do Unhão e seu conjunto arquitetônico, formado por casa grande, capela, chafariz, senzala e cais, testemunharam séculos de transformações internas e no entorno. Desde 1960, o complexo abriga o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), equipamento cultural que fez 65 anos em 2025 e, ao longo de décadas, enche a imponente construção de arte, cor e música.

Os primeiros registros da ocupação do terreno onde situa-se o conjunto arquitetônico do Solar do Unhão datam do século XVI, quando a área era propriedade de Gabriel Soares de Sousa. O português era dono de plantações e gado. Nas horas vagas, escrevia crônicas sobre a vida na colônia. De origem obscura, mas enriquecido e elevado à nobreza ao ser favorecido por Tomé de Souza de quem, suspeitava-se era um filho bastardo, morreu em uma expedição pelo Rio Paraguaçu e deixou o terreno para os beneditinos.

O complexo foi construído ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX como um empreendimento agroindustrial urbano similar aos engenhos de açúcar, mas nunca foi comprovado o seu uso para esse fim. Nessa época, a população de Salvador era muito menor, e todo o insumo alimentar chegava basicamente pelos rios e pelo mar.

"O arquiteto Paulo Ormindo, que foi aluno de Lina Bo Bardi [a criadora do MAM-BA], fala que o Solar do Unhão foi o primeiro embrião de porto da cidade de Salvador, por isso a presença de trilhos dentro dele, assim como de engrenagens para içar cargas e teto alto para estruturar o armazém. Os barcos vinham pelo rio Paraguaçu, chegavam na Baía de Todos-os-Santos e aportavam no solar, onde os alimentos eram armazenados e distribuídos", conta o mediador cultural do MAM, Adson Brito.

Fachada lateral da Capela do Unhão mostra as duas torres sineiras do templo, um sinal de poder econômico colonial
Fachada lateral da Capela do Unhão mostra as duas torres sineiras do templo, um sinal de poder econômico colonial | Foto: Cedoc A TARDE / 26-01-1981

O solar também foi residência de muitas famílias ao longo dos séculos. O desembargador Pedro de Unhão Castelo Branco, que emprestou seu sobrenome ao casarão, morou ali em 1690. No começou de 1700, o local foi comprado por José Pires de Carvalho e Albuquerque, que estabeleceu morgado, um vínculo perpétuo sobre os bens para que permaneçam em posse da família. O filho de José, Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque, o sucedeu em 1759 e a posse seguiu gerações até atravessar o século.

Em 1816, o suíço Meuron instalou uma fábrica de rapé no solar, que funcionou até 1926. E, em 1853, Antônio Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, o Visconde da Torre de Garcia D’Ávila, ao morrer legou a propriedade para sua filha, que era casada com Antônio Moniz Barreto de Aragão, o primeiro Barão de Mataripe. A propriedade só foi vendida em 1917, para Clemente Pinto de Oliveira Mendes. Em1928, ele a passou para Valeriano Porfírio de Souza, que transformou o local no trapiche Santa Luzia. Foram os descendentes de Porfírio que venderam o solar para o Estado.

"Durante as mediações que faço, costumo brincar que o Solar era como uma casa de praia para as pessoas do século XVIII e XIX, mas também um home office, porque muitas moravam, mas também cuidavam dos negócios", conta Adson Brito, que é também multiartista, produtor, e professor.

O tombamento do Solar do Unhão pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), depois rebatizado de Instituto, sob a sigla Iphan, ocorreu em 16 de setembro de 1943, incluindo o antigo portão de entrada, rampa de acesso, parque, aqueduto, capela e duas fontes de água doce.

No meio do caminho havia um solar

No fim da década de 1950 e início de 1960, o Solar do Unhão correu o risco de desaparecer. E o perigo nem de longe vinha do mar que salga as suas paredes há séculos. Com a cidade em expansão, planejou-se construir a Avenida Lafayette Coutinho, mais conhecida como Contorno, para ligar os bairros do Comércio e Barra. No meio do planejamento urbano, porém, havia um solar. O projeto original previa uma das pistas na nova via passando entre o solar e a capela e a outra onde estavam o aqueduto e a fonte, o que provocou forte reação de toda a sociedade e repercussão na imprensa.

Conjunto Arquitetônico do Unhão seria demolido em 1960 para construção da Contorno, mas plano da avenida circundou o solar
Conjunto Arquitetônico do Unhão seria demolido em 1960 para construção da Contorno, mas plano da avenida circundou o solar | Foto: Cedoc A TARDE / 23-10-1993

A edição de A TARDE do dia 26 de maio de 1960 destaca o caso - “Ameaçado Solar Unhão pela Avenida Contôrno” -, na chamada da reportagem. Logo abaixo, na linha de apoio, o texto ressalta o absurdo da então Secretaria de Viação considerar “dispendioso o projeto que preserva o conjunto. A bela construção, relíquia arquitetônica do passado, está tombada pelo Património Histórico e Artístico do País e não deve ser prejudicada”.

A reportagem ouviu o então chefe do 2º Distrito do Patrimônio Histórico na Bahia, Godofredo Filho, que se declarou em alerta máximo. "Opinem os doutos (...), sobre se a nova pista virá servir realmente ao sistema viário da cidade; debatam sôbre suas vantagens econômicas em relação à importância autêntica ou convencional da obra (...) Nosso interesse é só o de saber como ficarão à margem dessa provável avenida os monumentos que nos cabem preservar, para entregá-los aos vindouros como os recebemos de nossos antepassados, pois mais por êles que por quantas avenidas novas ou prédios de nove andares, é que a Bahia supera outras cidades do Brasil e tornou-se conhecida, estudada, vivida e amada", opinou o professor.

No dia seguinte, 27 de maio de 1960, A TARDE publicou uma segunda reportagem sobre o risco de derrubada do solar. Intitulado "Reliquia histórica e artistica não pode ser atingida pela Avenida de Contôrno", o texto aponta que o Solar do Unhão “era um depositário de séculos de nossa história”. Godofredo Filho foi ouvido novamente e ressaltou: "Que os nossos deputados e senadores, os bahianos sobretudo, se lembrem disso (...) monumentos de nossa arte e padrões de nossa história são consumidos pelo descaso dos homens e a indiferença do tempo".

A arquiteta, o casarão e o museu

Tudo mudou quando a arquiteta ítalo-brasileira Achillina Bo, mais conhecida como Lina Bo Bardi, foi convidada pelo então governador Juracy Magalhães, em 1959, para implantar um museu de arte moderna na Bahia. No mesmo ano ela propôs a restauração do Solar do Unhão, onde instalaria um Museu de Arte Popular que dividiria o espaço com o de arte moderna. A primeira exposição do MAMB - hoje MAM - aconteceu em janeiro de 1960, no foyer do Teatro Castro Alves, sede provisória enquanto o solar era restaurado.

Escadaria projetada por Lina Bo Bardi é um dos símbolos do MAM
Escadaria projetada por Lina Bo Bardi é um dos símbolos do MAM | Foto: Cedoc A TARDE / 08-05-1992

"Lina chega à Bahia para ser professora da Faculdade de Arquitetura da UFBA. Quando ela é convidada para criar o MAM, foi motivada por muitos outros artistas, como Pierre Verger, Carybé e Martim Gonçalves. Entre as mais notáveis intervenções que fez no solar, há a instalação de muxarabins, espécie de tela que favorece a luminosidade e a ventilação; o revestimento, que uns chamam de reboco e outros de reboque, que é mais simples, acessível e de menor custo, e o piso, onde ela reutilizou materiais ", explica Adson Brito.

E claro, há a escada. Para o mediador cultural e muitos visitantes do MAM ao longo de 65 anos, a escada dentro do casarão onde as exposições temporárias costumam ficar, é uma das mais belas intervenções feitas por Lina. "Além de ser utilitária, é também a escada que pauta a relação [do passado com o presente] sem separatismo. É o colonial, é o erudito e é a história desse espaço, que armazenava cana de açúcar e rapadura, e era agroindustrial. Lina espelha a engenharia do carro de boi e faz essa escada toda encaixada em formato de hélice que, inclusive, comunga com a atual exposição instalada no espaço, a Okòtò: Espiral da Evolução, de Goya Lopes", reflete Adson Brito.

Solar do Unhão é um dos marcos do poder colonial
Solar do Unhão é um dos marcos do poder colonial | Foto: Cedoc A TARDE / 11-04-1981

As exposições temporárias também ocupam a capela de Nossa Senhora da Conceição, que foi dessacralizada depois que ofícios religiosos deixaram de ocorrer ali. No total, o MAM é composto pelo Parque de Esculturas, Galeria de Arcos, Espaço Lina de Arte Popular, Cine MAM e as galerias na capela e casarão, que contam a história do espaço e da própria Lina. O local é, também, palco de manifestações artísticas como o Jam no MAM. A rádio A TARDE FM também já realizou uma edição especial do Conversa Brasileira de Verão no espaço. E o conjunto também oferece residências artísticas e possui um Núcleo de Oficinas bastante procurado. A realização de oficinas no MAM completa 45 anos agora em 2025.

Para fazer o antigo solar colonial abraçar a vanguarda do MAM, Lina Bo Bardi reestruturou e ressignificou todas as edificações do complexo sem desrespeitar a potência daquela construção secular banhada pelo mar. Para Adson Brito, o Museu de Arte Moderna e o Solar do Unhão acabaram se tornando uma coisa só. “Esse é um museu catalisador, que dialoga com todas as expressões artísticas que se pode imaginar", reflete.

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*Colaboraram Andreia Santana e Tallita Lopes

*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época

*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE

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