Ternos de reis mantêm tradição apesar da concorrência dos paredões
Acervo de A TARDE possui registros sobre os desfiles das agremiações na Lapinha e no Bonfim desde o começo do século XX
“As castanholas, pandeiros, lanternas e tambores já estão disponíveis na Casa Rômulo”. O anúncio publicado nos classificados de uma edição de A TARDE de 1914 avisa aos organizadores dos ternos de reis daquele ano que os estoques renovados de aviamentos, instrumentos e berloques da melhor qualidade garantem a beleza dos desfiles. Em 1915, uma convocação parecida com os editais da atualidade, publicada na página 2 do jornal, afirma: “Deseja-se falar com os diretores de alguns ternos bem organizados que pretendam tomar parte na próxima Festa de Reis, para negócio de interesse”. Em 2025, 110 anos depois da convocação feita no tempo em que os ternos tinham prestígio na cidade, a presença de todos os remanescentes dessa tradição na Lapinha ainda é incerta e nem todos têm recursos para desfilar.
Além da falta crônica de dinheiro, essas agremiações também enfrentam a concorrência da modernidade e da mudança de gostos, interesses e comportamentos da juventude. “Com o processo da modernidade, com muitas festas, muitos paredões, muitas outras atividades, as meninas não têm mais aquele amor de sair em terno de reis. Antigamente, as mães traziam as meninas para vir dançar no terno. Hoje, já é diferente, as meninas têm mais oportunidades de sair, de viajar, de ir para outras festas e o terno sempre fica em segundo plano”, afirma Isabel Dória, da União dos Tradicionais Ternos de Reis e Bailes Pastoris da Bahia e filha dos fundadores do Terno Rosa Menina, que em 2025 completa 80 anos.
A dificuldade dos ternos não vem de agora. Há exatos 25 anos, na edição de 04 de janeiro de 2000, A TARDE já falava de uma ‘ameaça’ à tradição. Além das dificuldades financeiras das entidades que, geralmente, nascem em áreas periféricas, a concorrência das músicas comerciais é que afastava a juventude das agremiações.
Na época, a organizadora do Terno das Flores, Maria Ribeiro dos Santos, então com 93 anos, já se queixava do desinteresse por essas entidades: “Apesar de dizerem por aí que a tradição está recuperando a força, o desinteresse continua grande”, queixava-se dona Maria, que mantinha a tradição desde os 15 anos.
Além da dificuldade de captar novos integrantes, os ternos precisam correr atrás de editais para obter recursos e desfilar. Rosa Menina garantiu presença na Festa da Lapinha deste ano, que começa no domingo (05), porque obteve verba a partir de um edital da Fundação Claudete Macedo, de apoio a festejos populares.
“Se a gente não entrar no edital, se não tiver dinheiro para comprar as roupas, as alegorias, os sapatos, mudar o figurino, porque de um ano para o outro muda muito, aí não tem como se apresentar”, enfatiza Isabel Dória.
Circuito de festas
Os ternos de reis chegaram ao Brasil como herança religiosa portuguesa e se baseiam nas histórias bíblicas da visitação dos reis magos Gaspar, Melchior e Baltazar à manjedoura onde Jesus nasceu, em Belém, na Palestina, levando os presentes de ouro, incenso e mirra, conforme narra a tradição cristã. Na origem, os grupos percorriam as casas das comunidades rurais desde o dia de Natal, 25 de dezembro, até a véspera do 6 de janeiro, Dia de Reis.
Nas edições históricas de A TARDE, há referências a desfiles de ternos desde 1913, no ano seguinte à fundação do jornal. As agremiações, porém, se apresentam há muito mais tempo e não somente na Bahia, mas em outros estados como Rio Grande do Sul. Aqui no Estado e, principalmente, em Salvador, essas festas têm laços com devoções populares e com outros folguedos, como os ranchos.
Também nem só da Festa da Lapinha viviam os ternos no passado recente da cidade, embora o forte dos desfiles se concentre na data que celebra os reis magos. Uma edição de 1916 de A TARDE, publicada no dia 17 de janeiro, fala da participação dos ternos também na programação do Bonfim:
“O primeiro a chegar, acompanhado de crescida multidão, foi o Terno da Espera, composto de mais de 60 senhorinhas e cavalheiros, lindamente trajados, e que recebeu grandes ovações. Depois chegaram os ternos do Crysânthemo, também digno de destaque; das Orchidéas, da Estrela do Oriente, das Saloias e outros. Os ranchos da Urucubaca, da Pomba, do Urubu Cheiroso, do Leão de Ouro, do Pavão, do Jacaré, da Borboleta, da Sereia e, por fim, os Padecentes da Conflagração Europea, todos cheios de verve e sempre acompanhados de numerosa massa popular. Depois dos cânticos na porta da egreja, os ternos e ranchos contornaram o templo, seguindo para o arrabalde de Itapagipe.”
Outra reportagem, essa de 19 de janeiro de 1952, cita a presença dos ternos no Bonfim a partir das 23 horas, quando as primeiras agremiações começaram a chegar na concentração no adro da igreja, no alto da Colina Sagrada. “Os diversos ternos irão dançar no coreto. Este é mais um motivo para o êxito desta noite e madrugada de amanhã, pois são esperados, ao todo, cinco temos”, diz o texto.
Segundo Isabel Dória, antigamente, os ternos iam para todas as festas de largo de Salvador. Além do Bonfim, onde se apresentavam no sábado à noite, as agremiações também participavam das festas do Rio Vermelho, da Pituba e de Itapuã. Atualmente, o Terno Rosa Menina viaja para cidades como Valença, Itatim, Rafael Jambeiro e Santo Estêvão. Além disso, recebe convites de faculdades e escolas para exibições.
Rosa octogenária
O Rosa Menina foi fundado em 1945 por Silvano Francisco do Nascimento, pai de Isabel Dória. Ela conta que o pai já participava de ternos antes, mas sempre nas agremiações dos outros. “Ele ia ensaiar os integrantes dos outros ternos e em 01 de novembro de 1945, fundou o Rosa Menina. Depois, ele se mudou aqui para Pernambués, trouxe o terno, conheceu minha mãe, minha mãe saiu no terno e depois eles namoraram, se casaram e viveram juntos por 52 anos”, acrescenta.
Nos anos 1960, quando acontecia o concurso de ternos na Lapinha, o Rosa Menina era uma dentre as mais de 30 agremiações que marcavam presença na festa e na competição. Seu Silvano era o compositor das músicas para os desfiles, todas com temática religiosa. “No primeiro ano em que participamos do concurso, ficamos com o segundo lugar. Depois, começamos a ganhar em várias edições, até o último ano, que foi em 1976”, lembra Isabel.
O Rosa Menina é todo administrado pelos nove filhos de Silvano e de Luiza Cruz do Nascimento. Cada um exerce uma função na agremiação, da confecção de adereços e atualização dos arranjos das canções originais até a parte logística e administrativa. O terno também funciona como uma associação artística e educacional em Pernambués.
Para Isabel, falar do Rosa Menina é contar sobre os laços de afeto que unem sua família e relembrar as noites de Natal em que dona Luiza ficava até altas horas da noite costurando os últimos adereços nas fantasias que seriam exibidas no desfile da Festa de Reis da Lapinha.
“Meus pais construíram essa história. É com muita responsabilidade [que acontecem as apresentações] e muito amor, amor mesmo, porque para fazer tudo isso é com muito amor, a gente se doa o ano todo. Eu mesma fico muito emocionada quando falo do terno Rosa Menina porque vêm muitas lembranças, me dá saudade e, ao mesmo tempo, me levanto e falo ‘ela [a mãe, dona Luiza] pediu para a gente não deixar o terno morrer, então vamos manter a sua tradição’.”
*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE