Trabalhadoras domésticas têm exemplo histórico de luta por direitos
Categoria formada em maioria por mulheres sustenta rede de apoio que é crucial para a emancipação feminina
No próximo dia 8 será comemorado o Dia Internacional da Mulher. A data é uma criação para dar destaque às conquistas femininas na busca por equidade de direitos. Mulheres, nas mais diversas culturas, foram e continuam sendo vítimas de uma série de violências liderando rankings das mais variadas formas de desigualdades, como não ocupar postos de liderança ou receber menos que homens no mercado de trabalho mesmo que desempenhem a mesma função. À medida que se fazem recortes, como os de cor, um critério crucial para debater violência no Brasil, as negras lideram os índices de não acesso a direitos básicos. Uma categoria que está em vulnerabilidade constante, mesmo sendo crucial para que outras mulheres estejam no mercado de trabalho é a das trabalhadoras domésticas. A luta dessas profissionais tem sido incansável, como mostram os registros do Cedoc A TARDE.
“Nunca houve bom tempo para empregada doméstica. Historicamente alvejadas por qualificações depreciativas, como graxeira e motorista de fogão, até tiveram uma alegria na Constituição de 1988, quando conquistaram o reconhecimento legal como trabalhadoras. Mas não deu para festejar. A maioria ainda não tem carteira assinada, recebe menos do mínimo e mesmo para as que formalizaram contrato regular o desemprego bate às portas. Em 1995, o Sindicato dos Empregados Domésticos (Sindoméstico) fazia de uma a duas rescisões contratuais por dia. Hoje, a média diária varia de cinco a seis”. ( A TARDE, 7/6/1999, p. 4).
O trabalho doméstico no Brasil é uma das ocupações onde persistem os efeitos colaterais da tragédia da escravidão, como o racismo e outros tipos de violência. Não à toa, volta e meia, surgem notícias de pessoas resgatadas de condições que são consideradas análogas à escravidão. São casos em que não há salário, predominam situações de cárcere privado e outros tipos de abuso.
“Enquanto trabalhadoras domésticas representamos uma categoria antiga, mas que até hoje está lutando. Atualmente temos mais participação na vida política sindical, dos movimentos negros e de mulheres. Contribuímos e continuamos a contribuir para a emancipação de muitas outras mulheres para que elas possam fazer faculdade e trabalhar fora de casa. Há mudanças, mas ainda tem situações terríveis como o trabalho análogo à escravidão”, diz Creuza Oliveira.
Atual secretária de Formação Sindical e de Estudos do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Domésticas da Bahia (Sindoméstico), Creuza Oliveira é presidenta de honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad). No ano passado, ela se tornou a primeira mulher que atuou como trabalhadora doméstica a receber o título de doutora honoris causa da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Além das suas lutas, as trabalhadoras domésticas têm um papel fundamental na emancipação de outras mulheres. Sem elas não seria possível para muitas conciliar uma carreira e a rotina de administração da casa. “Nós somos as parceiras para que outras profissionais possam estudar, construir suas carreiras. E isso nem sempre é tão debatido ou se traduz em apoio”, completa Creuza Oliveira.
Trajetória intensa
Um dos marcos do ativismo para garantir os direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil foi a ação de Laudelina de Campos Melo (1904-1991). Mineira, ela começou a trabalhar aos sete anos e por isso teve que abandonar a escola. Já morando em São Paulo ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), na Frente Negra Brasileira (FNB) e fundou a primeira associação que reuniu trabalhadores domésticos no Brasil.
Ao longo do tempo, a categoria encontrou dificuldades para ter acesso pleno aos direitos trabalhistas. Tanto que as garantias de carteira assinada e previdência social só chegaram em 1972.
Durante o processo para a promulgação da Constituição de 1988 as trabalhadoras domésticas tentaram ampliar suas conquistas. Vieram alguns benefícios, como o salário-mínimo, mas a falta de regulamentação e dos sistemas mais rígidos de fiscalização dificultaram a aplicação de medidas efetivas.
Desafios
Calcula-se que no Brasil estão em atuação, de forma oficial, pouco mais de cinco milhões de pessoas no trabalho doméstico. Mas segundo Creuza Oliveira esse número chega a oito milhões por conta da informalidade que ainda é alta e se intensificou após a pandemia de coronavírus. Na categoria de trabalho doméstico estão inseridas ocupações, como motorista particular, jardineiro e caseiro, mas a maioria é quem desempenha as funções de arrumação de casa, preparo de comida e babá, funções que muitas vezes são exercidas de forma acumulada. As mulheres negras lideram os índices do exercício desse tipo de serviço.
Ser obrigada a dormir no emprego e nos finais de semana; desistir de estudar; estar vulnerável à exploração de trabalho infantil, abuso moral e sexual, dentre outras formas de violência são situações que continuam presentes no exercício do trabalho doméstico para uma parte significativa das profissionais. Isso torna as lutas trabalhistas da categoria ainda mais complexas.
Tanto que a melhor sedimentação dos direitos das trabalhadoras domésticas ocorreu a partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 72. Essa medida ficou mais conhecida como PEC das Domésticas. Promulgada em 2 de abril de 2013, ela foi regulamentada dois anos depois. A emenda estabeleceu salário-família, seguro-desemprego, jornada de oito horas diárias e 44 semanais, indenização em caso de demissão sem justa causa e obrigatoriedade do recolhimento do FGTS. Esse último ponto foi bastante comemorado pela categoria por conta do acesso mais direto ao sistema de financiamento de casa própria no Brasil.
“A PEC foi uma reparação para uma categoria que já vem há décadas construindo e que não tinha acesso a políticas públicas de acesso à moradia, saúde, educação, creche, dentre outras. A gente sonhava com o FGTS e com as horas extras. Nossa luta é longa, desde os tempos de Laudelina Campos de Melo na década de 1930 e os direitos foram pingando. Primeiro veio a carteira assinada, os vinte dias de férias e para contribuir com o INSS era preciso apresentar certidão negativa de antecedentes criminais. É uma luta árdua até porque gente dos três poderes nos empregam. As batalhas no âmbito da justiça, especialmente a do trabalho, são árduas, afinal estão lá julgando muitos dos interessados na questão do seu ponto de vista. Na nossa categoria existem as perspectivas de gênero, raça e classe, pois ainda tem gente que nos olha como se fôssemos um móvel ou outro objeto de sua propriedade”, analisa Creuza Oliveira.
Comprar um imóvel era um sonho considerado quase inalcançável pela maioria das trabalhadoras domésticas, afinal, se não conseguem sequer ter respeitado o princípio da formalização do trabalho como reunir recursos para algo caro? A dificuldade com a moradia pode ser medida por um elemento comum nas construções habitacionais brasileiras especialmente nas grandes cidades: “a dependência de empregada” ou o “quarto da empregada”, expressão de uso mais popular. Uma análise do trabalho doméstico com toda essa complexidade foi a base do filme Que horas ela volta?, dirigido por Anna Muylaert e protagonizado por Regina Casé.
Mesmo com essa conquista, as dificuldades continuaram, como foi registrado em uma reportagem de A TARDE publicada em 2016:
“Um ano após a entrada em vigor da PEC das Domésticas, que assegura mais direitos aos profissionais do lar, 76% das pessoas que trabalham em casas no Nordeste ainda estão na informalidade. Apesar dos avanços nos últimos anos, a categoria ainda briga para ter os mesmos direitos dos demais trabalhadores”. (A TARDE, Empregos, Concursos & Negócios, 5/6/2016, p.2)
Com tantos obstáculos há também indicações de esperança. Se esses entraves não desanimaram a categoria, o exemplo de resistência de mulheres como Laudelina Campos de Melo, Creuza Oliveira e outras inspiram as novas gerações que não aceitam retroceder no caminho da emancipação.
A TARDE fez importantes registros sobre as lutas das trabalhadoras domésticas; confira:
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia