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A Tarde Memória

Por Andreia Santana e Priscila Dórea*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 22 de novembro de 2025 às 6:47 h | Autor:

Vendedoras de quitutes são fundamentais para o comércio de rua

Séculos antes do conceito de afroempreendedorismo existir, as ‘tias do mingau’ criaram redes de solidariedade e resistência em Salvador

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Imagem ilustrativa da imagem Vendedoras de quitutes são fundamentais para o comércio de rua

Antes do nascer do sol, as ruas de Salvador, principalmente as que têm grande fluxo de pedestres, despertam com a movimentação de mulheres dispondo em tabuleiros as panelas fumegantes de mingau de milho, tapioca, carimã e o perfumado mungunzá. Com o avançar do dia, algumas trocam as iguarias e oferecem desde o café com bolo até o pastel e outros empanados, sem contar o acarajé, abará e cocada, acompanhando a rotina dos trabalhadores que têm na tradicional comida de rua o sustento para a labuta diária.

Chamadas entre o século XIX e começo do século XX de “ganhadeiras” ou “negras de tabuleiro”, as mulheres que ainda praticam o chamado empreendedorismo de sobrevivência na cidade são, em sua maioria, pretas ou pardas. Tiram das ruas o sustento dos filhos, seguindo tanto uma tradição familiar, porque as mães e avós também exerciam o mesmo ofício, quanto são empurradas pela necessidade da subsistência, girando a roda de uma economia que troca a ideia precária da informalidade pelo conceito de afroempreendedorismo. Na penúltima reportagem em alusão ao Mês da Consciência Negra, o A TARDE Memória conta a história das vendedoras de rua desde os anos 1800 e sua ligação com a cultura afro-baiana.

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No século XIX, entre as vendedoras havia muitas escravizadas, que comercializam para os antigos senhores, aproveitando para fazer um dinheiro extra com o excedente e assim comprar as próprias alforrias ou de familiares. As libertas e aquelas que nasciam livres também seguiam no comércio de rua ou abriam quitandas. Entre as comerciantes, até o começo do século XX, havia ainda as que adquiriam prestígio social e relativo sucesso financeiro. Muitas ialorixás, como Mãe Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, e integrantes de irmandades como a da Boa Morte, em Cachoeira, pertenciam a esse grupo de mulheres negras que se destacavam no comércio.

Essa realidade, inclusive, está tanto na historiografia oficial quanto na literatura. Kehinde, protagonista do romance Um defeito de cor, da escritora Ana Maria Gonçalves, recentemente eleita a primeira autora negra para a Academia Brasileira de Letras, é uma dessas mulheres de tabuleiro que percorriam as ruas da Salvador oitocentista vendendo guloseimas.

Com o sucesso dos seus quitutes, a protagonista do romance se estabelece no comércio e, mesmo quando sai da Bahia e vai ao Rio de Janeiro, em busca de reencontrar um filho perdido, se mantém comerciante. Kehinde é a ficcionalização de Luiza Mahin, mas sua construção como personagem de um romance histórico e de época é feita com base em estudos de historiadores e antropólogos sobre as dinâmicas sociais durante e após a escravização africana no Brasil. O romance, por exemplo, oferece uma reconstituição de época bastante fiel da sociedade baiana e carioca dos anos 1800.

Economia escravista

O papel das mulheres negras na economia escravista no século XIX tinha uma importância fundamental no comércio de pequeno porte, pois permitia que a população da época tivesse acesso a produtos essenciais, como explica a historiadora Cecília Soares, professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e doutora em antropologia, que pesquisa há anos as mulheres negras, seu comércio e suas redes de solidariedade.

"De acordo com registros de inúmeros viajantes que passaram por Salvador e o Recôncavo, essas mulheres comercializavam ‘de um tudo’. Produtos para o cozimento de roupas, linhas e agulhas, mas também patas de boi, o chamado mocotó, doces e quitutes da culinária afro-brasileira, entrelaçada com a culinária indígena e a europeia. Elas saíam de várias casas, inclusive das mais opulentas, assim como de conventos. Mas, também comercializavam para si. Várias eram escravas, no entanto havia mulheres livres e mulheres libertas, todas tentando prover a sua subsistência", detalha a pesquisadora.

Em 2009, os estudos de Cecília Soares serviram de base para o especial A Cidade das Mulheres, publicado em A TARDE no dia 8 de março daquele ano, no Dia Internacional da Mulher. Na ocasião, o artigo 'Mulheres Negras na Bahia do século XIX', da professora, foi adaptado para o formato de história em quadrinhos pela jornalista e doutora em antropologia Cleidiana Ramos, com ilustrações do cartunista Cau Gomez.

O texto explica sobre o trabalho enquanto obrigação para as mulheres e os homens negros que viviam das atividades de ganho nas ruas de Salvador nos anos 1800: "Aos 40 anos, um homem ou uma mulher tinha a aparência e as complicações de saúde de alguém com o dobro da sua idade. Imaginem então o que isso significava para as mulheres! O tipo mais comum de ocupação dessas mulheres era a função de doméstica e de ganhadeira, o ofício de comercializar produtos alimentícios".

As mulheres também podiam vender vísceras, eram as chamadas fateiras, e pescados. Elas ainda regulavam o preço do que vendiam, seguindo a lógica da oferta e demanda. Em Um Defeito de Cor, Ana Maria Gonçalves fala do cotidiano dessas vendedoras em todo o romance, ressaltando o fascínio de Kehinde pelas mulheres que exerciam o ofício, a amizade que a protagonista cultiva com algumas delas, sua entrada para o mundo do comércio e o quanto essas mulheres estavam presentes no dia a dia da sociedade da época.

"O trabalho mais comum entre as mulheres era o de vendedora. Andavam por toda a cidade equilibrando imensos tabuleiros na cabeça e vendiam os diversos tipos de doces e salgados, frutas, verduras, refrescos e, até aguardente. Havia vendedores homens também, mas em menor número. E os tabuleiros de pratos quentes, como os de acará, eram só das mulheres. Estas ficavam em lugares fixos porque fritavam o bolinho na hora, em fogareiros improvisados, espalhando por todo lado o cheiro do dendê, que prontamente me levava à África", diz um trecho do romance, que é escrito no formato de uma longa carta de Kehinde para o filho que ela tenta encontrar.

Mingau quentinho

O mingau talvez seja a iguaria mais facilmente associada à dinâmica das vendedoras de quitutes tradicionais nas ruas de Salvador. Cremosa, doce e quente, a bebida costuma remeter ao aconchego familiar. Sem romantizar o empreendedorismo de sobrevivência, é importante ressaltar que, muitas vezes, as vendedoras oferecem mingaus feitos com receitas aprendidas com suas mães e avós. Essas mulheres se sucedem, em muitos casos, nas chefias das famílias há gerações e trabalham desde a madrugada. Como lembra a professora Cecília, mingau é um produto que se vende muito cedo.

Antiga imagem em clichê publicada em A TARDE em 1936 mostra vendedora com seu tabuleiro Foto CEDOC A TARDE 05-09-1936
Antiga imagem em clichê publicada em A TARDE em 1936 mostra vendedora com seu tabuleiro Foto CEDOC A TARDE 05-09-1936

"É uma rotina que obriga ela a acordar na madrugada e às 5h da manhã instalar o seu ponto, passando por ritualísticas de asseio e cuidados para a preservação daquele local, que precisa estar limpo, puro e asseado para receber a sua freguesia. Passado das 9h da manhã, o mingau praticamente sai de cena e outras iguarias passam a ser comercializadas. Através do olfato, percebemos uma profusão de cheiros dando o indicativo que é uma outra iguaria sendo vendida. No final da tarde, por exemplo, vem o acarajé", detalha.

As vendas, assim como as vendedoras, compõem a dinâmica da cidade. Ao longo do dia, o comércio de outras iguarias pode ser feito pela mesma vendedora do mingau da manhã, por uma pessoa próxima a ela ou mesmo por um terceiro, que negocia a sua presença no espaço. "O importante é que o produto esteja ali", pontua Cecília Soares, ressaltando que durante as suas pesquisas, muitas vezes se perguntou se as vendedoras no século XIX atuavam com a venda de mais de um tipo de produto, cumprindo um ciclo que vai do café da manhã ao almoço, lanche e jantar.

A literatura, que tem o direito de ser menos precisa que a história, responde que sim: "Elas tinham certos horários para passar pelas ruas e de manhã bem cedinho vendiam acaçá, mungunzá, bolos e pães. Um pouco mais tarde apareciam com o almoço, geralmente peixe frito ou carne-de-sol, angu, feijão e farofa, sendo que as mulheres de etnia hauçá também vendiam o arroz de hauçá, feito com iscas de carne-de-sol frita, que era uma delícia. À tarde, o que tinha mais saída eram os refrescos, a água, os pães, os bolos e os doces, e à noite ainda podiam voltar a vender o que sobrava do almoço", detalha Kehinde em outro trecho do romance Um defeito de cor, ao relembrar a rotina das ganhadeiras nas ruas de Salvador.

No caso das vendedoras escravizadas do século XIX, elas repassavam um percentual dos lucros para os senhores e, se morassem fora da casa dos patrões e o senhor assumisse as despesas, passavam toda a féria para eles. "Quando a mulher era liberta, a renda da vendagem lhe pertencia. Dali ela tirava seu sustento e o da sua família. Mas, a vida de ambas não era fácil: as crises econômicas e até as alterações do clima interferiam no preço dos produtos”, continua o texto do especial de A TARDE de 8 de março de 2009.

Articuladoras da revolução

Cecília Soares conta que é comum perguntarem se - e como – as ganhadeiras participaram de revoltas contra a escravização. No romance de Ana Maria Gonçalves, por exemplo, Kehinde se envolve na Revolta dos Malês de 1835. Dada a circulação das vendedoras pela cidade, é possível que tenham participado de lutas contra a escravidão ou de outras redes de articulação de resistência negra e solidariedade.

“Após 1835, com a Revolta dos Malês, o governador da província da Bahia passou a estabelecer regras para a circulação das pessoas pretas, principalmente escravos. Circular após as 18h tornou-se impossível sem salvo-conduto. Mas há muitas representações fotográficas e gravuras de encontros de negros e negras em locais de comércio, conversando. E nesse diálogo se passavam informações, dificuldades, desafios”, explica a professora Cecília.

Professora Cecilia Soares estuda as dinâmicas sociais e econômicas das vendedoras de rua Foto Acervo Pessoal
Professora Cecilia Soares estuda as dinâmicas sociais e econômicas das vendedoras de rua Foto Acervo Pessoal

Atualmente, a rede formada pelas vendedoras de rua e sua clientela não capta mais rumores de revoltas e rebeliões, como no século XIX, mas a presença delas nas ruas oferece o conforto do alimento ainda preparado em moldes tradicionais e a segurança proporcionada por um espaço urbano ocupado por pedestres. "A clientela sente falta delas quando faltam ao ponto. Com chuva, com sol, de manhã cedo e desafiando as questões de segurança, elas estão ali estabelecendo redes de solidariedade. Muitas vezes, são a única referência em uma parada de ônibus e os clientes se sentem seguros", diz Cecília Soares.

Ainda segundo a pesquisadora, toda a composição da vendagem das mulheres, desde a cor das roupas, preferencialmente tecido branco muito alvejado, até os adornos e o esmero dos recipientes, são aspectos que chamam a atenção da clientela e permite a confiança naquele alimento “que acalenta, nutre e dá a sustância necessária para enfrentar o dia", salienta a pesquisadora, apontando que o conceito de afroempreendedorismo pode até ser relativamente novo, mas a prática está presente em documentos sobre as mulheres negras e suas práticas de comércio desde o século XIX.

"Quando dizemos trabalho informal, não conseguimos dar conta de todas as suas nuances e singularidades que a informalidade traz, mas há autonomia, necessidade de produzir e de vender: alguém precisa consumir, você precisa ter uma renda e você precisa fazer também com que este dinheiro circule. Este é um tipo de economia que movimenta grupos específicos e é isto que o afroempreendedorismo faz. Isso nós aprendemos com nossos ancestrais, então redefinimos e reelaboramos”, afirma.

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