Vestes, armas e partes dos corpos de cangaceiros eram expostos no DPT | A TARDE
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Vestes, armas e partes dos corpos de cangaceiros eram expostos no DPT

Reportagens publicadas em 1940 e 1960 registraram como parte desse material foi reunido em acervo

Publicado sábado, 27 de agosto de 2022 às 05:00 h | Autor: Cleidiana Ramos*
Cabeças e armas de Lampião e integrantes do bando foram expostos em museu no IML
Cabeças e armas de Lampião e integrantes do bando foram expostos em museu no IML -

O cangaço fascinou e ainda fascina a academia e as artes, especialmente a literatura e o cinema. Um dos responsáveis pela repressão do movimento, o sistema policial baiano, foi mais além: preservou o que considerava a memória dessas ações guardando armas, vestimentas e partes dos corpos, especialmente as cabeças, dos integrantes do bando chefiado por Virgulino Ferreira, mais conhecido como Lampião. Além da guarda foi feita a exposição pública deste material.  Parte desse acervo ficou, durante décadas, no Museu Estácio de Lima, unidade do Departamento de Polícia Técnica da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (DPT-SSP-BA) onde funciona o Instituto Médico Legal Nina Rodrigues. O acervo acabou fechado. Registro sobre a posse desses elementos controversos estão em duas reportagens da coleção de edições de A TARDE: uma de 1940 e outra de 1960. 

Segundo a reportagem publicada na edição de 23 de maio de 1940, Velocidade, um ex-integrante do bando de Corisco entregou à polícia armas e um chapéu do cangaceiro. A informação foi confirmada por Leoncio Azevedo, então titular da Delegacia de Ordem Política e Social. 

“Velocidade, o componente do grupo de "Corisco" que fugiu para entregar- se à polícia bahiana. quiz, num gesto que provasse o seu completo abandono à vida de cangaço, entregar às autoridades as armas e munições dos seus ex-companheiros”. (A TARDE, 24/5/1940, p.2). 

No texto, que foi publicado na véspera da morte de Corisco, também conhecido como Diabo Louro, seu antigo comandado, Velocidade, afirmou que ele ainda não havia se entregado à polícia por conta da influência de Sérgia Ribeiro da Silva, mais conhecida como Dadá. Sequestrada e estuprada por Cristino Gomes da Silva Cleto, o nome civil de Corisco, quando tinha 13 anos, com o tempo Dadá tornou-se sua mulher e viveu ao seu lado até a morte de Diabo Louro. No cerco que culminou na morte de Corisco ela foi atingida na perna e, como consequência, precisou amputar o pé. 

“Corisco, se não fosse a sua companheira, como diz “Velocidade”, já se teria entregue. Mas Sergia- a mulher do “diabo louro” não consente. “Essa mulher vale mais do que um homem”, confessa Velocidade. Inutilizado, incapaz de lutar, “Corisco” foge ameaçado de morrer, se tentar ameaçar o banditismo”. (A TARDE 24/5/1940, p.2)

Corisco foi um dos sobreviventes do cerco mortal ao bando de Lampião em 1938. Conhecido pela velocidade na reação e na ferocidade dos ataques ganhou o comando de um grupo, pois uma das estratégias de Lampião era combater em várias frentes. Decidiu que ia vingar a morte do chefe matando o homem que o delatou. Mas o massacre que promoveu foi de uma pessoa e de membros da sua família que não tinham nenhum envolvimento com a delação. 

Empréstimo 

Duas décadas depois da publicação da reportagem sobre a posse de peças pertencentes a Corisco pela polícia baiana, A TARDE contou na edição de 23 de junho de 1960 que um empréstimo para o filme O Cangaceiro, de Lima Barreto, acabou em prejuízo para o Museu Estácio de Lima. Nesse acervo estavam as vestes de Lampião e de outros integrantes do seu bando. 

“Procurando retratar a vida bárbara e Inquieta dos bandoleiros, o cineasta Lima Barreto, além de recolher amplo documentário no "Museu" sobre os mesmos, tomou por empréstimo as vestes usadas por “Lampião" quando rodava o filme "Cangaceiro". Até hoje, entretanto, apesar das cartas que lhe foram endereçadas- essa peça não foi restituída, constituindo-se deste modo, em perda irreparável para aquele museu. Existem, ali, ainda, do bando de "Lampião", os fuzis, punhais, bordéis, garruchas, cartucheiras e chapéus usados pelos seus integrantes, bem assim armas de Canudos e crânios, as quais têm a sua história criminal” (A TARDE 23/6/1960, p.4).

Reportagem sobre vestes de Lampião, emprestadas para filme
Reportagem sobre vestes de Lampião, emprestadas para filme |  Foto: Cedoc A TARDE
 

O trecho final já sinaliza para outros elementos presentes no acervo: partes de corpos humanos, inclusive as cabeças degoladas dos corpos dos cangaceiros. 

“Na Seção de Antropologia Criminal do Museu "Estácio de Lima", uma das mais completas coleções do país se encontram, além de armas e vestimentas de terríveis cangaceiros, cabeças autênticas de muitos deles, inclusive as de “Lampião". "Maria Bonita", “Corisco", "Zabelê", “Azulão” e "Maria", bandoleiros que por muitos anos, encheram de terror o nordeste brasileiro. Conservadas e embalsamadas, devidamente protegidas por cúpulas de vidro também como acontece com um braço de “Corisco” fraturado e amputado num combate travado no interior do Estado, estas peças são de grande interesse médico-legal estando o dr. Estácio de Lima procedendo exame e pesquisas nas mesmas e que serão brevemente publicadas”. (A TARDE, 23/6/1960, p.4). 

No local tinham mais peças que beiravam a surrealidade, como os corpos de pessoas para representar as “raças humanas”. Segundo o texto, dezenas de milhares de pessoas visitavam o espaço a cada ano.  

“Cerca de 20.000 pessoas visitam, anualmente, o museu do “Nina”, conhecendo suas peças de grande interesse médico-legal, inclusive os esqueletos de um branco, um preto e um mulato, além de um “cafuso” embalsamado, pobre e desconhecido que não tendo lar nem família, sendo na vida anônimo acabou por ser conhecido de milhares de pessoas depois da sua morte”. (A TARDE, 23/6/1960, p.3). 

As visitas a este espaço continuaram por décadas seguintes e abertas a turmas de estudantes. Pode-se imaginar a construção de um discurso que misturava práticas culturais, afinal o acervo tinha também peças atribuídas a grupos indígenas e africanos, e a criminologia.  Este é, de certa forma, um exemplo do que foi a construção do pensamento da antropologia criminal e da medicina legal na Bahia fortemente influenciada pelo racialismo e seus perigosos desdobramentos como a persistência do racismo. No caso dos restos mortais dos cangaceiros, alguns dos seus descendentes batalharam e conseguiram o direito de retirá-los do local e da inadequada exposição. 

Conexões 

A composição do Museu Estácio de Lima está relacionada a um acervo iniciado na Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus em homenagem a Nina Rodrigues (1862-1906), o principal teórico da antropologia criminal e da medicina legal na instituição. Rodrigues fez também trabalhos etnográficos como o que resultou no Animismo Fetichista dos Negros Baianos, um estudo pioneiro sobre os candomblés de Salvador, publicado em 1896 em português e quatro anos depois em francês. 

A primeira versão do acervo foi instalada no final do século XIX na Faculdade de Medicina, no prédio localizado no Terreiro de Jesus. Em 1905, um incêndio no prédio destruiu as coleções de Nina Rodrigues. Oscar Freire (1882-1923) fez uma tentativa de reorganização do acervo, mas afastou-se do projeto para assumir a implantação de uma cátedra de medicina legal em São Paulo. Ele morreu em seguida. Estácio de Lima (1897-1984) o sucedeu no projeto. Posteriormente, por decreto do governo baiano, o espaço passou a se chamar Museu Estácio de Lima. 

 “A existência de tal acervo, contribuiu para reforçar e divulgar popularmente, preconceitos e equívocos, sobretudo se consideramos a alta popularidade que o museu tinha junto à população. A reunião de objetos relacionados ao candomblé, ao lado de objetos relacionados ao Cangaço, crimes contra a economia popular, produção, tráfico e consumo de entorpecentes e ainda o acervo de Medicina legal, produziu um campo de significados que reuniram todas essas referências a partir da perspectiva da degeneração, anomalia, corrupção, criminalização”, analisa  Marcelo Cunha, professor do Departamento de Museologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e coordenador do Museu Afro-Brasileiro  (Mafro-Ufba). Cunha é pesquisador e curador do acervo afro religioso do Museu Estácio de Lima que, em 2010, ficou sob a responsabilidade do Mafro, inclusive em um processo iniciado com uma reportagem de A TARDE que merece uma edição específica dessa coluna. 

Batalhas 

Na década de 1980, Ordep Serra, doutor em antropologia, professor da Ufba e atualmente presidente da Academia de Letras da Bahia (ALB) denunciou a improcedência do Museu Estácio de Lima por meio de um artigo. “Aquilo não pode nem ser chamado de museu, pois não havia sequer sentido nas exposições afinal o que tem a ver restos mortais e peças sacras, como as de candomblé? Era, inclusive, uma espécie de culto à morbidez”, avalia. Seu manifesto contra o museu produziu ecos tanto de apoio, como também de incômodo nos meios acadêmicos, segundo conta. Mas na década de 1990 ao lado de religiosos de candomblé e de associações como a Koinonia, um coletivo voltado ao combate à intolerância religiosa, Serra articulou um movimento para a retirada das peças de candomblé do espaço. 

Por meio da Promotoria de Combate ao Racismo que na época tinha como titular Lidivaldo Britto, hoje desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), o Ministério Público da Bahia (MP-BA) recomendou que as peças saíssem das dependências do DPT. Elas foram levadas para o Museu da Cidade, órgão que pertence à Prefeitura de Salvador.

Em 2010 o Museu Estácio de Lima estava sendo preparado para ser reaberto nas dependências do DPT, inclusive com o retorno das peças de candomblé. Foi esse o conteúdo da reportagem de A TARDE publicada naquele ano.

“É uma cadeia de absurdos que, por pouco, não foi retomada. É uma indecência escandalosa afinal era o próprio estado o autor de uma pedagogia do racismo. A Medicina Legal estuda os dados que permitem apontar as evidências de um crime. O que isso tem a ver com a cadeia de eventos que levou alguém a se tornar cangaceiro e como o estudo de crânios dessas pessoas poderia comprovar isso? Ou seja, era a perpetuação e elogio da memória da aberração que foram as teorias lombrosianas, por exemplo, alimentando a brutalidade racista e isso financiado com dinheiro público”, completa Ordep Serra.   

Após a publicação da reportagem de A TARDE em 2010 ocorreu uma articulação da Fundação Pedro Calmon, sob a gestão do doutor em história Ubiratan Castro de Araújo (1948-2013), e da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) dirigida na época por Luiza Bairros (1953-2016) doutora em sociologia e uma das referências nas lutas contra o racismo. Esta ação conjunta da Fundação Pedro Calmon e da Sepromi permitiu que as peças ficassem no Mafro.

Em novos desdobramentos dessa iniciativa já existem providências que afastam o risco de retorno das peças à posse da SSP ou de suas unidades.  Há novos caminhos a ser percorridos para se tentar reparar equívocos cometidos em nome da ciência.  

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período 

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE

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