Visita de García Márquez a Salvador tem lembranças fantásticas
Primeira visita a Salvador, o Nobel e a análise da obra de García Márquez foram temas de edições de A TARDE
“Até a adolescência, a memória tem mais interesse no futuro que no passado, e por isso minhas lembranças da cidadezinha ainda não estavam idealizadas onde todo mundo conhecia todo mundo, na beira de um rio de águas diáfanas que se precipitavam num leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos”. Em Viver para Contar, origem desse trecho, Gabriel García Márquez, cuja morte acaba de completar dez anos, tece os enredos que mostram o quanto das memórias dele estão encarnadas na sua literatura real e fantástica. Macondo é uma metáfora da própria terra natal, mas que não fica distante do chão onde tudo é possível, inclusive a persistência da família Buendía para fugir do destino de estirpe varrida da terra. É um encantamento como os tantos feitos por Jorge Amado a quem García Márquez apontou como responsável por o fazer despertar para a condição de Salvador semelhante à sua terra de sonhos:
“O escritor e jornalista colombiano Gabriel García Márquez, que está em Salvador, tentando ‘encontrar uma parte de suas origens’, disse ter ficado encantado com a força popular do Brasil, pois é nessa força que está a maior grandeza do continente latino-americano”. (A TARDE, 2/10/1978, p.3).
Nessa primeira visita, segundo a reportagem, García Márquez lamentou a ausência de Jorge Amado, que estava fora do País. Mas esteve com um dos grandes amigos do escritor baiano: Calasans Neto. E, embora em um espaço pequeno, o texto tem muitas boas histórias reveladas por Gabo, como era carinhosamente chamado pelos amigos: ele visitou diversos pontos turísticos da capital baiana, esteve, além de Calasans Neto, com Carybé; disse que em visita ao Rio de Janeiro convenceu Chico Buarque a musicar seus poemas e aproveitou para ver diversos filmes brasileiros, como Dona Flor e seus Dois Maridos.
“Embora os críticos apontem como sua melhor obra o livro Cem anos de Solidão, Gabriel García Márquez aponta Ninguém Escreve ao Coronel, como o de sua preferência, apesar de poucos o terem lido, como revelou. Até parece — disse ele —, que escrevi ‘Cem Anos' para que o outro livro fosse lido”. (A TARDE, 2/10/1978, p.3).
E Márquez fez outras considerações muito interessantes: a importância da Revolução Cubana, que considerou ter colocado a América Latina no centro de interesse da Europa, e a ausência de reconhecimento para o valor da literatura do continente. Quatro anos depois dessa visita, a obra de Márquez chamou a atenção para a produção literária latino-americana. Ele foi o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, mas não pelo livro que citou como o preferido na reportagem de A TARDE, e, sim, Cem Anos de Solidão, uma referência do movimento, estilo ou gênero chamado realismo mágico.
“O realismo mágico é um estilo que pode também ser considerado por alguns teóricos como um gênero literário que trabalha com o elo do sobrenatural com o cotidiano. Pensando na obra de Gabriel García Márquez, ele já deu entrevista em que fala que viveu a primeira infância em Aracataca com uma avó muito supersticiosa, religiosa, propulsora das tradições e com um avô muito objetivo, muito prático e muito direto. Na obra de Gabriel tem o mágico, a exuberância e o exagero do menino que nasce com uma caudinha de porco e a menina que tem a beleza celestial e encantadora que faz todos sucumbirem a ela. É a possibilidade de uma outra realidade”, analisa Adriana de Borges. Doutora em Teoria da Literatura, ela é professora da Uneb e especialista no estudo de literaturas hispânicas e latino-americanas.
Alegoria
A professora aponta que alguns estudiosos consideram Cem Anos de Solidão como uma alegoria de denúncia sobre os problemas socioeconômicos vividos pelos países americanos e que a partir da década de 1960 se agravaram com os golpes militares seguidos por ditaduras. “Macondo é um povoado ficcional, mas tem muito da realidade de Aracataca, onde empresas estrangeiras chegavam para explorar os recursos naturais. Era um mundo fundacional onde não havia lei e muita violência, onde tudo era possível”, completa Adriana de Borges.
Ela aponta que Gabriel García Márquez tanto no jornalismo como na literatura exercia uma relação muito pessoal. “Gabriel chegou a dizer que escrevia para ser amado pelos amigos. Em Ninguém Escreve ao Coronel fica muito patente essa relação forte com o jornalismo, mas que também vai para o poético, e o alegórico em uma linguagem muito acessível”, acrescenta.
Na reportagem de A TARDE sobre a primeira visita, o escritor acentuou essa forte relação com o jornalismo. Sobre o método, afirmou que não gostava de usar gravador.
“Só anoto o essencial, depois escrevo. Quando não entendo alguma coisa, invento. Não declarações, é claro. Mas um episódio que não compreendo bem geralmente sai melhor do que na realidade”. (A TARDE, 2/10/1978, p.3).
O texto de 1978 é muito interessante, pois mostra um Gabo muito próximo das obras, alternando humor com reflexões que beiram a poesia, quando diz que o Carnaval é uma festa cheia da tristeza que identificava no olhar das pessoas que o aproveitavam. Acrescentou que se considerava um homem triste, além de tímido. O humor retornou quando afirmou que, após conhecer o trânsito no Brasil, chegou a imaginar estar mais seguro em um avião, meio de transporte que lhe causava medo.
“Não sei como não se matam todos – admirou-se”. (A TARDE, 2/10/1978, p.3).
Em 1992, Gabriel García Márquez retornou a Salvador. O encontro com Jorge Amado, que não ocorreu em 1978, já havia acontecido em outras oportunidades, fora do País.
“Paloma Amado relembra o que ouviu de Jorge e Zélia (1916-2008) sobre a passagem do célebre escritor por Salvador em 1992. Ela conheceu o escritor juntamente com os pais na Feira do Livro de Frankfurt, em 1970. “Quando papai morreu, ele escreveu uma coisa linda. Disse que o Caribe perdeu seu maior escritor, posto que Bahia é Caribe e que a literatura de ambos é irmã”. (A TARDE, 19/4/2014, Caderno 2, capa).
Memórias
Por conta dos dez anos da morte do escritor, a Netflix lançou o trailer da série baseada em Cem Anos de Solidão há algumas semanas. Também foi publicado, de forma póstuma, o romance Em Agosto nos Vemos. Nos dois casos houve uma certa polêmica. Gabo costumava dizer que não conseguia vislumbrar Cem Anos de Solidão em uma produção audiovisual. Também disse que não gostou do resultado do último livro, mas os filhos resolveram realizar as duas produções.
“Eu estou muito curiosa para ver a série e sobre a polêmica acho que o escritor tem uma visão de sua obra, mas há a questão do leitor e do espectador. Ele acreditava que não seria possível, mas o tempo muda muita coisa. Quanto ao livro já comecei a ler. Ele não queria que fosse publicado, mas por outro lado é um presente para a humanidade conhecer uma nova obra de Gabriel. Concordo um pouco com os filhos nesse sentido e acredito que o pai os perdoaria”, afirma a professora.
Gabo era também conhecido pelas afirmações contraditórias. Na reportagem de A TARDE de 1978, por exemplo, disse que não pensava em escrever novos romances depois de O Outono do Patriarca. Afirmou estar na fase de se dedicar ao jornalismo, esperando a luz da criatividade acender. Ainda bem que a iluminação voltou em grande estilo.
No mesmo texto, o autor que duvidava do resultado de ver a mais famosa obra transposta para o audiovisual, indicou que flertava com essa linguagem, ao afirmar ter o sonho de escrever roteiros para cineastas brasileiros, a exemplo de Cacá Diegues e Rui Guerra. Alguns amigos costumavam dizer em entrevistas que nunca se sabia quando ele estava realmente falando algo a sério, afinal era um filho à perfeição de sua Macondo. E, por isso, tantas e tantas homenagens estão ocorrendo, nascidas da saudade de uma literatura feiticeira e que dá profunda razão à sensação de sua não morte. Como avalia a professora Adriana de Borges, alguém como ele não morre, mas, na verdade, encanta-se. Sua Aracataca e Salvador sabem bem como se faz essa passagem mágica tornar-se real.