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Visita de Uri Geller a Salvador foi promovida por A TARDE

Estrela da paranormalidade foi alvo de polêmicas desde ascensão midiática na década de 1970

Publicado sábado, 23 de julho de 2022 às 06:00 h | Autor: Cleidiana Ramos
Passagem de Uri Geller por Salvador foi uma promoção de A TARDE em parceria com a TV Itapoan
Passagem de Uri Geller por Salvador foi uma promoção de A TARDE em parceria com a TV Itapoan -

Para o Carnaval de 1977, o grupo Novos Baianos lançou Pra Lá de Uri Geller. A canção, de autoria de Luiz Galvão e Pepeu Gomes, destacava uma das habilidades mais conhecidas de Uri Geller, paranormal israelense, naturalizado inglês: “Entorta faca, garfo e colher”. Um ano antes, A TARDE, em parceria com a TV Itapoan, trouxe Uri Geller para duas apresentações em Salvador registradas nas edições de 30 e 31 de agosto.

Na primeira apresentação, ocorrida no Ginásio Antônio Balbino, conhecido como Balbininho, e que era um anexo do estádio Octávio Mangabeira- Fonte Nova, Geller fez números de telepatia- tentando adivinhar palavras-; comandou um processo em que quatro rapazes supostamente fizeram levitar um homem de 100 quilos e realizou a sua especialidade, que era entortar garfos e colheres, além de colocar para funcionar relógios levados por integrantes do público. Esta parte do show era realizada aos gritos de “Funciona”, entoados pela plateia a pedido de Geller. Mas houve um problema durante a realização do número de telepatia:

Jornal registrou Uri Geller no Balbininho, em Salvador
Jornal registrou Uri Geller no Balbininho, em Salvador |  Foto: Arquivo A TARDE
 

“Neste interim uma garota tinha feito mentalmente um bloqueio da concentração, lhe transmitindo um nome errado. Este fato foi logo descoberto por ele que pediu que aquela pessoa que tinha enviado a mensagem errada se apresentasse. Foi uma garota de mais ou menos 12 anos que ele tirou da plateia e colocou perto dele e pediu que ela ficasse até o fim da apresentação para ter uma conversa com ele”. (A TARDE, 30/8/1976, p.3). 

A menina parece ter realmente impressionado Uri Geller, pois o assunto voltou no trecho final da reportagem:

“Durante a sua apresentação, disse que achou estranho o bloqueio que estava sendo feito pela moça e esclareceu: "eu não consigo receber as imagens ou elas chegam erradas, esta é a primeira vez que acontece e que falho”. O que mais lhe surpreendeu foi que este fato aconteceu com uma criança, justamente com quem ele tem mais sucesso”. (A TARDE, 30/8/1976, p.3). 

Na reportagem sobre a sua segunda apresentação, dessa vez realizada no Teatro Castro Alves (TCA), Uri Geller respondeu a dois importantes setores em torno da sua fama: os críticos e a mídia. Para esta última, no caso a brasileira, sobraram elogios: 

“Nunca recebeu tanta simpatia e nunca encontrou imprensa que o tratasse com tanto respeito. Se publicam as críticas sobre ele, o que é dever da imprensa, publicam também as opiniões favoráveis e divulgam o que realmente vem acontecendo, sem distorcer. – Não li, até agora, um único artigo inteiramente contra mim, disse ele. Vejo muitas reportagens citando críticos, mas o autor deixa sempre claramente que está ao meu lado”. ( A TARDE 31/8/1976, p.3). 

Já em relação aos críticos disse que eles não tinham provas contra os seus poderes paranormais: 

“Sobre seus críticos, diz que gosta de ler o que eles escrevem, mas ainda não explicaram como as colheres entortam, o que não é de admirar, porque ele mesmo não sabe explicar porque isso acontece. "Mas todos vêm que não há truque algum" e diz que a prova é que muitos dos presentes também são capazes de fazer o mesmo, porque possuem a mesma força”. (A TARDE, 31/8/1976, p.3). 

Embates   

Embora afirmasse que seus críticos não tinham como contestar o que seriam seus poderes, quando veio a Salvador Uri Geller já tinha experimentado uma contestação no programa The Tonight Show, comandado por Johnny Carson, na emissora norte-americana NBC, em 1973. Carson convidou Geller, que já estava fazendo sucesso, para ir ao programa onde ele foi desafiado por James Randi que era um ilusionista dedicado a desmascarar o que considerava fraude em supostos poderes paranormais. 

Randi foi um dos fundadores do Comitê para a Investigação Cética (CSI) ao lado de Carl Sang, Isaac Asimov, dentre outros.  No programa da NBC, Randi sugeriu, por exemplo, trocar os talheres que Geller utilizava pelos da produção do programa alegando que ele os entortava por meio de um truque que alterava a liga dos metais. Assim, em contato com o calor dos dedos eles eram facilmente entortados. Diante da troca, Geller não conseguiu fazer o número. 

A década de 1970 foi um período de proliferação de fenômenos associados ao sobrenatural, em alguns casos relacionados à espiritualidade. Os defensores dessas correntes recorriam à validação científica para explicar desde a capacidade que alguém possui de mover objetos até os contatos com extraterrestres. 

Uri Geller, por exemplo, foi o protagonista de um estudo científico realizado por pesquisadores do Stanford Research Institute, uma instituição renomada. O artigo foi publicado na revista Nature, publicação cientifica de referência.  

“O experimento tinha como objetivo validar a existência ou não de seus poderes psíquicos como a telepatia, a telecinese, que é a capacidade de fazer objetos funcionarem sem a intervenção física como os relógios. Mas a própria revista em editorial eximiu-se da discussão sobre a comprovação ou não dos dados”, conta o doutor em antropologia, Cláudio Luiz Pereira. 

Segundo Pereira, a psicologia experimental deixou esse campo para a parapsicologia que assumiu o protagonismo para explicar fenômenos que podem se aproximar da espiritualidade, mas no sentido de mostrar habilidades em que o mediador é a mente humana. “Para compreender esse embate pode-se pensar em quanto o esforço mental para crer em algo é muito menor do que aquele para se compreender especialmente o que desafia o esperado ou o racional”, acrescenta Pereira. 

Desafios midiáticos

No Brasil, a estrela da parapsicologia foi o padre Oscar Gonzaléz-Quevedo. Espanhol naturalizado brasileiro, membro da Companhia de Jesus, mais conhecida como Ordem dos Jesuítas, Padre Quevedo tornou-se um fenômeno de mídia especialmente com o quadro O Caçador de Enigmas que passou a ser veiculado no programa Fantástico da Rede Globo em janeiro de 2000. 

No Fantástico, o quadro do Padre Quevedo sucedeu o protagonizado pelo ilusionista Mister M., que contava como aconteciam os processos considerados mágicos. Mister M. era apresentado como um inimigo dos colegas ilusionistas por revelar seus segredos. O tom do quadro assumido pelo padre era bem próximo ao de Mister M, também com narração de Cid Moreira e a aposta nas polêmicas com representantes dos campos ligados, principalmente, a elementos das religiões afro-brasileiras e do espiritismo cujos métodos de adivinhação e outros fenômenos eram mostrados como invalidados pelos argumentos de Quevedo.   

Em uma entrevista publicada na edição de A TARDE de 11 de agosto de 2002, Padre Quevedo criticou fenômenos como a psicografia de Chico Xavier, mas também as aparições de Nossa Senhora, mesmo nos casos em que há reconhecimento da alta hierarquia católica como em Fátima, Portugal. 

“Não há aparições. São visões a gosto do consumidor. A Igreja primeiro respeita a fé popular, a devoção popular. Nem aprova, nem proíbe. Proibiria se tivesse sem-vergonhice, exploração. Também não aprova porque não são aparições. São visões, projeções. Cada um vê o que quer e a Igreja sabe disso, pertence à ciência”. (A TARDE 11/8/2002, p.22). 

Licenciado em Humanidades Clássicas, Filosofia, Psicologia e doutor em Teologia, Padre Quevedo foi professor do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal) e do Centro Latino-Americano de Parapsicologia (CLAP), do qual foi também fundador e diretor. O trabalho do CLAP agora é feito pelo Instituto Padre Quevedo (IPQ). Na entrevista publicada em A TARDE, a transubstanciação, que é um dogma da Igreja, ou seja, a crença de que pelas mãos do sacerdote pão e vinho, durante a missa, se transformam em carne e sangue de Jesus Cristo, foi um dos poucos debates em que ele considerou a análise do ponto de vista da fé. 

“A transubstanciação, quando aquele pão se converte no Corpo de Cristo e aquele vinho converte-se no Sangue de Cristo, não é observável, acredita-se pela fé. Mas a fé tem que ter seus argumentos, o que se chama preâmbulos da fé. Dentre muitos milagres eucarísticos, que é a assinatura de Deus para garantir essa fé, temos o caso de Lanciano, na Itália, quando um padre duvidou e a hóstia converteu- se em carne humana, do miocárdio, viva, incorrupta há 12 séculos. O vinho converteu-se em sangue humano. A transubstanciação não é milagre. É fé, mas uma fé racional, porque está assinada por milagres”. (A TARDE, 11/8/2002,p.22). 

Esta resposta de Padre Quevedo é bem próxima de uma ironia em relação à parapsicologia, afinal não é consenso a sua condição de ciência, embora desse o final do século XIX suas bases já estivessem apresentadas. A criação do termo é atribuída, mais frequentemente, ao botânico Joseph Banks Rhine e ao psicólogo William McDougall reivindicando sua condição de campo da psicologia relacionado a estudos extrassensoriais. 

Independentemente das discussões sobre método científico, que estabelece rigor e checagem criteriosa de dados inclusive por outros cientistas para dar margem a debate e contestação, os fenômenos e controvérsias que acompanharam paranormais e céticos alimentaram, e ainda alimentam, os mecanismos da indústria cultural. Não à toa, um dos grandes sucessos atuais é a série Stranger Things, produção da plataforma de streaming Netflix.  A história ambientada na década de 1980 reúne elementos como cientistas trabalhando secretamente com paranormais, projetos monitorados por forças de segurança dos Estados Unidos e da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), dentre outros.  

Em seu site oficial, Uri Geller, que está com 76 anos, afirma que trabalhou com a CIA e o FBI em ações como usar o poder de sua mente para confundir computadores da KGB, o serviço de informações da URSS; rastrear assassinos em série, além de auxiliar a política de desarmamento entre EUA e URSS ao influenciar o negociador soviético, via a emissão de ondas cerebrais, a assinar um tratado de desarmamento nuclear. 

“Uri Geller é o que podemos chamar de um sujeito estrela, ou seja, aquele que tem carisma e que ganha projeção inclusive por meio da controvérsia. Isso também pode se dizer do Padre Quevedo”, avalia o antropólogo Cláudio Luiz Pereira. 

Essas duas estrelas acabaram por encontrar-se. Embora várias referências a Padre Quevedo, que morreu em 2019, afirmem que ele desmascarou Uri Geller em um programa de televisão, o que encontrei, no acervo de vídeos do Instituto Padre Quevedo, foi um desafio feito ao paranormal pelo padre nos bastidores da Rede Manchete. Uri Geller segue atuante nas redes sociais. Seu perfil oficial no Instagram tem pouco mais de 14 mil seguidores e no Twitter 22.608. 

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia.

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

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