Resenha Rubro-Negra - Futebol, escravidão e futuro
Jovem Cordino é time de uma pequena cidade maranhense envolvida na luta pela abolição
Uma das coisas que amo no futebol é a possibilidade de contar histórias que vão muito além dos gramados. Essa, por sinal, envolve da Copa do Nordeste até os séculos mais sombrios do Brasil: os 350 anos de escravidão, enfatizados pelo presidente Lula em seu emocionante discurso de posse no último domingo em Brasília. Dois dias depois, a posse do ministro dos Direitos Humanos, Silvio de Almeida, parecia complementar as palavras do presidente: “homens e mulheres pretas do Brasil, vocês existem e importam para nós”, enalteceu o ministro.
Homem negro, advogado e pós-doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, Silvio é referência em temáticas como racismo estrutural e políticas em prol da diversidade. É presidente do Instituto Luiz Gama, organização de direitos humanos voltada à defesa jurídica das minorias e de causas populares. É através do nome do instituto que começamos a colocar a Bahia no bolo e nos aproximar do futebol. Baiano de Salvador e criado na Ilha de Itaparica, Luiz Gama entrou para a história brasileira como o principal líder do abolicionismo no país. Sim, aquele conto de fadas que coloca a Princesa Isabel como a heroína do fim da escravidão, apenas por ter assinado a Lei Áurea (só isso, nada mais), é só papo furado.
Pois bem, ainda lá no século XIX, clubes antiescravistas começaram a brotar em ritmo acelerado entre 1878 e 1885, como bem nos conta o escritor Laurentino Gomes em sua obra ‘Escravidão III’. Alguns eram enormes, antigos e tinham grande repercussão nacional, como o paulista Caixa Emancipadora Luiz Gama. O nome não é por acaso, obviamente. Filho de uma africana alforriada e de um fidalgo português, Luiz, ainda criança, foi vendido como escravo pelo pai para um comerciante do Rio de Janeiro. Passou oito anos no cativeiro, antes de conseguir provas de que nascera em liberdade. Despois, tornou-se advogado, e pela liberdade dos escravizados dedicou sua vida até morrer em 1882, seis anos antes do fim da escravidão.
Mas nem só grandes clubes antiescravistas surgiram no período que mencionei no parágrafo anterior. Outros eram entidades de atuação local em cidades e vilarejos distantes do interior, que reuniam entre meia dúzia e uma dezena de membros para coletar fundos para a luta abolicionista. Foi o caso da Sociedade Libertadora 28 de julho, de Vila Barra do Corda, no Maranhão, fundada em 1882. Caso você seja aquele torcedor do Vitória fervoroso e não tenha notado, Barra do Corda, hoje ainda um munícipio pequeno a cerca de 400 km da capital São Luís, com pouco mais de 80 mil habitantes, é a cidade do Cordino, equipe que enfrentou o Vitória ontem à noite no Barradão pelas eliminatórias da Copa do Nordeste.
Veja como é a vida: o jovem Cordino, time de uma pequena cidade maranhense envolvida na luta pela abolição, jogou pelo Nordestão justamente na Bahia, um dos maiores territórios escravistas da América ao longo dos 350 anos mencionados por Lula. Por tudo isso que falei, considero esse ponto do discurso de Lula como um dos mais importantes. Afinal, o Brasil é um país que aboliu a escravidão graças à luta de muitos brasileiros, como baianos e maranhenses, mas nunca promoveu os negros e mestiços brasileiros a cidadãos plenos, com os mesmos direitos e deveres assegurados aos demais brasileiros, como desejava Luiz Gama ainda lá no século XIX.
Ter um governo atento a essa história de marginalização da população afrodescendente é uma tremenda esperança por dias melhores. Que os encontros da bola continuem a nos possibilitar o resgate de histórias como essa. Ao torcedor que esperava uma análise mais futebolística do jogo, me comprometo a fazer isto em colunas próximas. A semana foi muito importante para limitarmos o futebol às quatro linhas.