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Bahia, terra dos carurus

Publicado sábado, 07 de agosto de 2021 às 06:00 h | Atualizado em 07/08/2021, 16:31 | Autor: Isabel Oliveira
O bredo é uma Panc (planta alimentícia não convencional)
O bredo é uma Panc (planta alimentícia não convencional) -

Quando a palavra caruru é pronunciada, os baianos, e mesmo os turistas, aguçam os sentidos e rapidamente sentem o perfume do dendê a exalar. Relembram o sabor, a textura, e instantaneamente o efeito do salivar, porque a iguaria mais famosa da Bahia, ao lado do acarajé e do abará, é comida afetiva para sempre no coração dos nativos.

Mas a Bahia também é terra de outro caruru, que muitos certamente já viram por aí crescendo nas calçadas, nas ruas estreitas, nas nossas ladeiras e em muitos quintais sem se dar conta que aquela hortaliça pode se transformar num prato tão apetitoso quanto o tradicional caruru dos Santos Cosme e Damião e de Santa Bárbara.

O bredo, também conhecido como caruru, que pertence à família Amaranthaceae de gênero Amaranthus, é uma Panc (planta alimentícia não convencional). Muitas vezes confundida com erva daninha e ignorada pela maioria das pessoas, tem enorme valor nutricional.

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De acordo com a fitoterapeuta e nutricionista funcional e oncológica Kelly Franco, o bredo ou caruru possui várias vitaminas, como B2, B6, C, e sais minerais, entre eles ferro, potássio, cobre e zinco, além de possuir enxofre, componente quimiopreventivo do câncer. A especialista diz que o bredo é semelhante ao espinafre porque tem um elevado teor de ferro.

O caruru de folha pode ser completamente aproveitado, das folhas às sementes, que são um pseudocereal, e até mesmo o caule. A nutricionista conta que as “Pancs possuem muito mais nutrientes e compostos bioativos do que até mesmo as plantas convencionais”, salienta.

Na nossa literatura há antigos registros sobre as Pancs, denominação recente na nossa história gastronômica, dando conta que esses “matinhos”, também conhecidos como invasores, que se alastram e crescem em qualquer lugar, eram comuns às três etnias que deram origem ao Brasil.

O consumo de ervas nesse padrão, aliás, é similar ao de outras populações silvícolas mundiais e diz muito sobre o poder das plantas e a necessidade do consumo das ervas entre os humanos.

De fato, na literatura brasileira encontramos várias citações sobre os esparregados preparados a partir do cozimento de folhas diversas pelos então nativos da terra descoberta, importantíssimos no regime alimentar dos primeiros habitantes do Brasil. Dentre os guisados, os índios usavam a língua-de-vaca, a mostarda, a taioba, a capeba e o caruru ou bredo, usados nas mais diversas espécies, conforme o historiador e sociólogo Câmara Cascudo.

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Conhecida como planta invasora, o bredo nasce em qualquer lugar | Foto: Raphael Müller Ag. A TARDE

Conta Cascudo que o médico e antropólogo Carl Friedrich Philipp von Martius, importante estudioso do Brasil, visitou uma aldeia e encontrou os indígenas comendo um manjar de castanhas socadas com uma erva parecida com espinafre, o caruru. Nas pesquisas de Cascudo e da estudiosa Lys Andrade, há informações sobre a palavra caruru, que vem do tupi caá-riru ou "erva de comer".

Na capital baiana e pelas cercanias, as Pancs não são muito valorizadas, por isso não é comum encontrar quem as conheça. Mas no interior da Bahia e de outros estados, não é difícil se deparar com alguém que tenha pelo menos uma história para contar sobre o bredo e a forma afetiva como o vegetal, de algum modo, fez parte da sua vida.

É o caso da botânica Nelma Xavier, que nasceu em Boninal, Chapada Diamantina. Ela relata que dentre os vários pratos cozidos pela mãe, quando era criança, havia a omelete com bredo e outras folhas “misturada aos ovos batidos com um pouco de farinha de mandioca e mais uma pitadinha de sal. Esse era o (prato) que eu adorava quando mãe refogava”, diz.

As experiências do gastrônomo, pesquisador e escritor Alicio Charoth também remontam aos tempos de criança. Antigo proprietário do restaurante Maria Mata Moura, no Centro Histórico, ele tem a expertise aliada a uma história afetiva com Pancs, entre elas, o caruru de folha ou bredo. As Pancs fizeram parte da sua vida desde que se entende por gente. As primeiras lembranças são da avó.

“Minha avó fazia a língua-de-vaca, que era um prato bem tradicional da Semana Santa, eu me lembro. Precisava de uma quantidade muito grande. Lembro da minha avó penando, catando (folhas). Já o bredo era um prato do dia a dia e normalmente a gente fazia como moqueca de ovo. Fazia um refogado com cebola, temperos, quebrava o ovo dentro, botava o dendê e deixava cozinhar”.

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Chef Alicio Charoth apresentando seu prato | Foto: Isabel Oliveira | Ag. A TARDE

Charoth conta que a avó tinha os saberes dos antigos. A comida achada no quintal, que não tinha fama, não era processada, nem vivia nas propagandas para o consumo, era usada no dia a dia. Eram encontradas na horta da casa, onde a cultura das ervas medicinais ainda persistia e era usada como alimento.

Enquanto tempera suas histórias com pitadas de lembranças, Charoth salteia as folhas de bredo, colhidas em ruas e calçadas, para montar um prato de infância feito pela avó, “mas repaginado”, diz.

Alicio mostrou que vale a pena futucar a memória, saborear as lembranças, resgatando uma cultura antiga, cheia de histórias, ainda que haja uma nova roupagem, um novo olhar. O bredo, nessa receita, tem sabor muito parecido com espinafre e o valor nutricional é incontestável. Aproveitem, pois a receita é simples, gostosa e barata. Muito apropriada para os tempos atuais (confira a receita abaixo).

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Foto: Raphael Müller Ag. A TARDE

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