Restaurante De Comer com os Orixás faz releitura da comida de santo
O estabelecimento é o primeiro que funciona dentro de um terreiro de candomblé e reúne acervo de obras sacras

Enquanto para a Igreja
Católica o santo protetor dos jornalistas é São Francisco de Sales, para o povo
de religiões de matriz africana a proteção da categoria é dada por Exu!
Segundo
o professor Vilson Caetano, doutor em antropologia e professor da Escola de
Nutrição da Ufba, além de pai de santo do terreiro Terreiro Ilê Oba Lokê, em
Lauro de Freitas, Exu é o princípio da comunicação, é o mensageiro.
“Ele
é jornalista, repórter, editor, fotógrafo. Tudo que está ligado à comunicação e
às maneiras de se relacionar e estar no mundo. Fala-se que Exu é o grande
tradutor do universo. Ele fala todas as línguas”, diz o professor.
O orixá também é a boca que tudo come, como explica Vilson Caetano. “Exu é o orixá iorubá que come primeiro e come tudo que a boca come, embora tenha também as suas preferências”.
Em seu livro “Santo também come”, de 1979, Raul Lody, antropólogo, conta o mito sobre como Exu se sobrepôs aos demais orixás e foi o primeiro a comer: “Diz a lenda que Exu foi cozinheiro dos orixás”. Por causa de uma gulodice dos orixás, que o enganaram durante evento que reunia todos eles, Exu proclamou: “A partir daquele momento, ele, Exu, seria o primeiro orixá a comer, e sem a comida de Exu nada poderia acontecer no plano dos deuses e no plano dos homens”.

Talvez não tenha sido à toa que o Terreiro Ilê Obá L’okê inaugurou um restaurante de gastronomia sazonal, o De Comer com os Orixás, e teve em sua abertura, como prato de entrada, o bolinho “Abre Caminho”, de Erã Pantere (miúdos bovinos), de vísceras inspirados em Exu. O restaurante, de forma inusitada, é o primeiro que funciona dentro de um terreiro de candomblé.

A
novidade, conta o professor Vilson, “é que as pessoas que produzem essa comida
são de dentro da comunidade. O projeto De Comer com os Orixás é feito na
cozinha de uma comunidade de terreiro por gente de terreiro, por filhos e
filhas de santo com formação em gastronomia que estão descolonizando alguns
saberes gastronômicos a partir dos saberes e visões de mundo africanos
vinculados através de nossa comida”, afirma. O restaurante é sazonal e tem como
proposta realizar jantares temáticos inspirados na comida que os terreiros de
candomblé utilizam para se conectar com suas divindades.
A
comida, observa o professor Vilson, é “o principal veículo de comunicação das
pessoas com as divindades de matriz africana. A comida africana trazida pelos
negros escravizados ajudou a construir o que hoje conhecemos como comida
baiana, cuja gastronomia é atualmente muito valorizada”.
Como enfatiza Maria Stella de Azevedo, a mãe Stella, no prefácio do livro de Lody, “a dinâmica de comer e beber do candomblé transcende a ação biológica e se constitui na principal maneira de renovar e estabelecer o axé.[...] Comer é uma maneira de se comunicar com o orixá e de fortalecer a troca de axé”, escreveu.

Um dos pratos votivos para Exu, as vísceras bovinas temperadas e aromatizadas com um toque de bebida são os ingredientes para um prato curioso oferecido pelo restaurante. O Abre Caminho “é um prato a partir da reconstrução de uma comida votiva para os orixás Exu e Ogum, uma reconstrução daquilo que já existe, a partir do meu ponto de vista como chefe de cozinha e gastrônomo. Com este prato, é importante lembrar às pessoas que dentro do universo do candomblé, da comida votiva, a víscera é um elemento muito importante. O que para a gente é jogado fora, para o orixá é muito importante”, conta Tairan Vasconcelos, do restaurante De Comer com os Orixás.

Tairan nos conta como o Abre Caminho foi idealizado e simboliza a abertura do restaurante: “A abertura dos caminhos para o que vem a seguir”, diz Tairan.

“O prato votivo é feito a partir de miúdos bovinos, cozidos com à base aromática de camarão seco, cebola e azeite de dendê, feito como se fosse um guisado de vísceras bovinas. Outro elemento desse prato é um molho de pimenta emulsionado, cremoso e adocicado. E o terceiro elemento é uma geleia de gim, feita com limão-cravo sazonal e gim, que é uma bebida dedicada a Exu. Então a gente fez a gelatina. Mas por que tem esses três elementos? Porque eles representam o que a gente quer para um bom caminho: quentura, então a gente tem a presença da pimenta, azeite de dendê, a fritura por imersão; a gente tem um caminho doce, suave, como o molho de pimenta; tem uma refrescância que representa as coisas boas que Exu pode nos dar, as boas coisas da vida com a gelatina de gim e limão. Então, é por isso que ele se chama Abre Caminho. E também porque o número três é bem representativo em relação a Exu, em relação a caminhos. Nós temos três elementos nesse prato que representam essa abertura de caminhos”, conta.

O
professor Vilson esclarece que as comidas oferecidas pelo De Comer com os Orixás
são receitas revisitadas. “As comidas servidas no menu degustação não são
comidas de orixás, mas preparações inspiradas nas comidas dos orixás como
alguns pratos da cozinha paraense, baiana, mineira e assim por
diante”.
Segundo
o chef Tairan, o próprio terreiro idealizou e consolidou a proposta de criar
pratos da cozinha dos orixás, que vem sendo passada por gerações, mas como
releitura.
“Essa
parte de criação vem a partir do próprio terreiro. A proposta foi criar pratos
do que, de fato, a gente cozinha para os orixás e a partir das histórias que a
gente ouve dos pais, das mães de santo, dos nossos irmãos mais velhos. Para
criar esses pratos, foi feita uma consulta com pai de santo, com outras pessoas
que foram dando elementos e a partir da minha própria vivência como filho de
santo da casa”, diz.
O
terreiro, que de quebra reúne um acervo de obras sacras afro-brasileiras e no
ano passado recebeu o título de Patrimônio Histórico e Cultural do município de
Lauro de Freitas, tem nos seus filhos, mães e pais de santo o objetivo de
preservar o patrimônio a partir da ideia de um projeto etnogastronômico, como
afirma o professor Vilson.
“Foi
o entendimento de que a comida é elemento central nos terreiros de candomblé e
que esta comida de terreiro ajudou a formar várias cozinhas. A partir dessas
duas ideias, idealizamos o projeto, entendendo que a comida produzida na
cozinha de um terreiro pode também alimentar pessoas que querem fazer um
mergulho em nossa cultura através da comida. A novidade não está em preparar
comida numa cozinha de terreiro, mas entender a comida como algo que pode ser
oferecido como um atrativo turístico e um projeto etnogastronômico em que
utilizamos a comida ritual dos orixás como inspiração para a criação de pratos
contemporâneos”, afirma.
Vamos então saborear o Abre Caminhos do chef Tairan Vasconcelos feito de vísceras, elementos dedicados ao Exu, o orixá da comunicação, aquele que come tudo!

Bolinho
de Erã Pantere
Ingredientes:
Para
o Erã Pantere
400g
de vísceras bovinas (partes macias, como rins, coração...)
250g
de cebola batida
100g
de camarão seco moído
Óleo
vegetal
Sal
Especiarias
diversas (pimenta-do-reino, páprica e outros)
Para
o Bolinho
400g
de Erã Pantere
200g
de aipim cozido e amassado
Ovos,
farinha de trigo e farinha panko para empanar
Azeite
de dendê para fritar
Modo
de preparo:
Limpe
e lave muito bem as vísceras e coloque-as em uma panela com água e algumas
folhas de louro (ajuda a modificar o odor característico). Leve ao fogo alto
para aferventar em torno de 25 minutos ou até que fiquem com a cor mais clara e
macias. Escorra e coloque para esfriar. Pique em cubos bem pequenos ou passe em
um processador e reserve.
Em
uma panela, refogue muito bem a cebola e o camarão, acrescente as vísceras, sal
e as especiarias de sua preferência. Cozinhe até que esteja bem macia, se
necessário vá acrescentando água aos poucos.
Deixe
esfriar e reserve.
Misture
o aipim e o Erã Pantere pronto até obter uma massa homogênea e que não grude
nas mãos. Modele bolinhos de aproximadamente 25g. Passe na farinha de trigo, no
ovo batido e em seguida na farinha de panko. Frite por imersão no azeite de
dendê e sirva imediatamente.
Rendimento: Aproximadamente 25 unidades.
Terreiro Ilê Oba L’okê – Rua Dr. José Carlos Minahim, 3 - Quadra A -
71 98292-6092
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