Sururu, o molusco com nome indígena que tem a cara e o sabor da Bahia
A iguaria ganhou identidade de comida baiana ao ser preparado com aipim, coentro e dendê
As populações de sambaquieiros que por milênios habitaram a costa das Américas e até da Europa sequer poderiam imaginar que da concha de um desses moluscos que serviam de base de sua alimentação, sairia uma iguaria tão representativa do povo soteropolitano como é o caldo de sururu. Síntese da união de América, Europa e África, ele não é um prato exclusivo dos moradores do entorno da Baía de Todos os Santos, mas guarda em sua mistura de ingredientes e nas crenças acerca de seu poder de “levantar até defunto” um pouco da mística de uma terra que como poucas sabe dar sentidos a seus costumes.
O caldo de sururu tem fama de afrodisíaco e está presente em momentos de congraçamento, acompanhando uma cervejinha gelada ou mesmo como uma entrada rústica e pra lá de saborosa. Com nome científico de Mytella strigata e conhecido em todo o Nordeste brasileiro com a versão aportuguesada do tupi seru’ru, ele um molusco bivalve (com duas válvulas de filtragem da água) e protegido por uma concha formada por duas partes iguais que ocorre em toda a costa do atlântico e há milênios é usado na alimentação humana.
Muito antes da chegada dos povos de origem tupi ao litoral brasileiro, milênios antes da invasão europeia às Américas, já fazia parte da dieta dos primeiros habitantes do litoral entre os atuais territórios da Argentina e o sul dos Estados Unidos. Não à toa suas conchas são componentes numerosos dos sambaquis, montes de material calcário acumulada por séculos e séculos pelos povos pré-tupi.
Os sambaquieiros eram povos coletores-pescadores sedentários que permaneciam por longos períodos habitando pontos do litoral. Acumulavam conchas, ossos de animais e restos alimentares, formando grandes montes, que podiam passar de 30 metros de altura por 40 de cumprimento. Nesses locais, sepultavam seus mortos acompanhados de pertences pessoais e promoviam rituais. O calcário acumulado serviu para extração de cal para inúmeras construções, como foi o caso do Palácio do Governador erguido no século XVI para abrigar Thomé de Souza nos primeiros anos da cidade de Salvador.
Sua ocorrência abundante permite o consumo do sururu por milênios, sem que haja decréscimos de sua população. Uma exceção foi registrada em Alagoas, nas imediações da Lagoa Mundaú, justamente uma das regiões mais prósperas para a espécie. Por lá, chegou a funcionar a partir da década de 1920 a Mercantil Ltda., fábrica de conserva de sururu, responsável por abastecer o mercado interno e externo e que também transportava a iguaria em vagões de trem imersa em lama para suportar a travessia até Palmeira dos índios, entreposto comercial no agreste alagoano. A unidade acabou fechando as portas depois de sua produção tornar-se irregular por causa da extração desenfreada.
O molusco bivalve tão apreciado em caldinho por aqui é para os alagoanos um símbolo de identidade ao longo de séculos. “O sururu é o alimento ancestral de Alagoas e nos leva a uma Alagoas profunda”, diz o antropólogo Edson Bezerra, autor do ‘Manifesto Sururu: por uma antropofagia das coisas alagoanas’, lançado em 2004, em que propõe uma volta aos primórdios do estado nordestino definido por ele como uma terra baseada em lagoas e sururus. Por lá ainda se consome sururu cru com limão.
Se Alagoas é a terra onde o sururu mais prospera, é no entorno da Baía de Todos os Santos que ele ganha a sua receita mais famosa. Por aqui o caldo de sururu virou uma marca da culinária local não por seu ingrediente principal, mas por envolver em sua receita elementos indígenas, europeus e africanos. O coentro tão apreciado por essas bandas tem cadeira cativa em toda receita que se preze de caldo de sururu. Além disso, vai um pouco de azeite de dendê e, para engrossar, aipim (também conhecido pelos habitantes de outras regiões brasileiras como mandioca).
No Recôncavo baiano, rivaliza em preferência popular com a lambreta e o chumbinho, ou papa-fumo. A lista de mariscos usados na culinária do entorno da baía é longa e traz nomes quase sempre de origem tupi, embora suas espécies ocorram em diversos outros pontos do planeta. Aqui, o apreciador de moluscos pode se deliciar com pratos preparados com iguarias como mapé, carangondé, sarnambi, aratu e peguari. Quem puder aproveitar o verão e dar uma passada em Ilha de Maré ou qualquer outra localidade próxima dos manguezais do recôncavo
Para os que conhecem o sururu e vivem dele, como o marisqueiro Antônio da Silva, 65 anos, o bom mesmo são os que ficam “atolados no mangue”, ensina. Segundo ele, “quanto mais fundo é o lodo, eles ficam mais graúdos, se reproduzem mais e saem aos cachos com 25 a 30 sururus”. E arremata com um olhar sensível: “A concha é linda, mas não é aproveitada. Poderia ser usada para fazer artesanato”, dá a dica.
Mas o produto que despertou a sensibilidade do marisqueiro, que levanta bem cedo para catar o mexilhão, como o molusco é conhecido em outros estados, vai mesmo é parar em muitas panelas de vários restaurantes da capital baiana. É o caso do Boteco do Tomé, em São Tomé de Paripe, do gastrônomo e cozinheiro Antônio Alves Mascarenhas Neto, ou simplesmente Neto Mascarenhas. É das panelas dele sai um sururu de tirar o fôlego. Segundo ele, “o diferencial” é o pirão que acompanha a iguaria.
Neto revela que o sururu está entre os petiscos que mais saem no Boteco, “exatamente por ser um caldo diferente dos tradicionais, pois, além do sururu fresco, do mangue, utilizamos uma base com aipim”, salienta. A primeira dica dele é usar sempre o sururu fresco. No seu estabelecimento, ele pega os moluscos na concha e aferventa para retirar o “filé” na véspera do preparo do caldo.
E como acontece em muitos locais que comercializam o sururu, o restaurante não poderia escapar das lendas que envolvem a iguaria e o seu poder afrodisíaco. “Já tivemos casos de clientes que voltaram pra tomar o caldinho de sururu alegando que tiveram um fogo sem igual”, diz o gastrônomo, rindo muito. Ele ainda conta que algumas pessoas chegam, pedem um caldinho de sururu e profetizam: “hoje o dia promete!” Ou, ainda, há os que já aparecem perguntando: “Tem aquele caldinho de sururu mágico aí?”, conta.
Para quem fica sempre na dúvida, o nutricionista Brito Júnior esclarece que as histórias sobre alimentos afrodisíacos não passam de lenda. De acordo com o especialista, o que ocorre é que alguns petiscos “possuem na composição certos minerais, como o zinco, que ajudam na perfusão, ou seja, apresentam certa melhora na oxigenação sanguínea”, afirma.
De acordo com Brito, “as pessoas acabam confundindo, pois aquele mineral não é uma testosterona que resulta em uma ereção”, diz. Ainda assim, o nutricionista diz que “não deve ser dispensado, pois o sururu, como outros alimentos, tem propriedades que servem a outros fins e que o organismo precisa”, diz. Lenda ou não, o fato é que o sururu e outros frutos do mar nunca deixaram de ter essa fama e está entre as iguarias mais saborosas.
Trabalhando como cozinheira na casa de uma família no município de Camaçari, Selma de Souza não dá muita bola para essa história de afrodisíaco. Para ela, é só uma comida forte, que ela aprendeu a fazer ainda menina, com a mãe, que chegou a ser marisqueira em Ilha de Maré, antes de se mudar para Salvador. Na casa onde Selma trabalha, o cardápio é convencional, mas desde que o patrão descobriu suas habilidades com “comidas pesadas”, como sarapatel, rabada e, claro, caldo de sururu, aprimoradas quando teve uma pequena barraca de praia, quase todo fim de semana sai uma iguaria de boteco para animar a turma na resenha à beira da piscina.
Selma conta que a patroa não é muito fã da inclusão das comidinhas de boteco na dieta da família, “mas ela também come e gosta. Diz que engorda, que faz mal à saúde”, relata. Como vimos, o molusco não é esse vilão que pintam. É rico em proteína e sais minerais e tem pouca gordura. Só é preciso ter atenção com o fato de reter metais pesados se estiver exposto a águas poluídas, já que é um animal filtrador.
Restaurada a reputação do sururu, vamos a uma receita caseira e cheia de manhas da ex-barraqueira e hoje cozinheira Selma Souza, que traz o jeito popular de fazer o autêntico caldinho se sururu que só se vê na Bahia. Ela diz que prefere fazer com aipim, mas revela que também dá para fazer com batata inglesa.
Caldo de Sururu
Ingredientes
1kg de sururu
1kg de aipim
4 cebolas
8 tomates
10 dentes de alho
1 molho de coentro
4 folhas de louro
5 cravos da índia
4 pimentas-de-cheiro
2 pimentas-malaguetas
1 litro de leite de coco
1/2 xícara de azeite doce
3 colheres de sopa de azeite de dendê
50g de camarão seco
1/2 xícara de cachaça
sal a gosto
Modo de preparo
Cozinhe o sururu em um litro de água com metade do camarão seco moído por 20 minutos. Separe metade do sururu e reserve. Coloque a outra metade do sururu no liquidificador e bata com o caldo do cozimento. Junte o sururu reservado.
Coloque o azeite doce, duas cebolas picadas, cinco dentes de alho, os cravos, as folhas de louro, as pimentas e a cachaça em uma panela. Junte restante do camarão seco moído e tempere com coentro e sal a gosto. Cozinhe em fogo alto por uns dez minutos.
Enquanto essa panela está no fogo, coloque o azeite de dendê, duas cebolas picadas e os oito tomates picados em outra panela. Tempere com coentro e coloque em fogo alto por cinco minutos, mexendo sempre.
Junte tudo em uma panela funda e acrescente o leite de coco e o aipim já cozido e passado no processador em forma de purê. Leve ao fogo e deixe ferver por mais 20 minutos, mexendo sempre.
Agora, é só chamar os amigos e saborear o caldinho e porções de 200ml em canecas de louça.