Coração de sardinha

Ano passado eu montei um refeitório dentro de um festival internacional para alimentar artistas, produtores, técnicos e público. Foi lindo. Havia todo um conceito de ambientação e música para aquele que era um dos momentos mais esperados: a hora de comer a comida caseirinha glam do Pitéu da Katita.
O cardápio era brasileiro, algo contemporâneo, e marcado, como sempre, pela minha memória afetiva. E por entre os guisados, ensopadinhos, baiões, xinxins, bifes de panela, almôndegas ao sugo sincero, feijões tropeiros, vacas atoladas, saladas frescas e graciosas, arrozes coloridos, e coisas que tais, eis que chega o dia de, orgulhosamente, apresentarmos a nossa incrível, fabulosa e chiquérrima Sardinha na Pressão, com cebola, ervas aromáticas e azeite excelente.
Pra quê? Os olhares, ávidos para alcançar o bufê, que ultrapassavam diariamente a porta de entrada pontualmente às 12 horas, perturbados pelo cheiro de comida amorosa, e tentando disfarçar a euforia da fome, ao pousarem nos recháuds e ouvirem as palavrinhas mágicas "Sardinhas na Pressão", ditas pelas bocas orgulhosas e sorridentes da equipe de cozinheiras, faziam broxar imediatamente a fome daquela grande maioria.
E foi um tal de solicitação de opção vegetariana, que não tinha para quem quisesse.
E eu, por dentro: "Gente, esse povo não teve infância, não? Socorro, esse povo não tem coração!" Drama! E quase choro.
Foi quando uma coisa deveras interessante aconteceu.
Salva pela Europa
Começaram a chegar grupos de europeus para almoçar. Espanhóis e franceses, salvo engano. E ao perceberem o prato do dia, ao contrário das broxadas baianas, pareciam ter ereções de entusiasmo. E como comeram felizes, para o meu acalanto!
Eu poderia jurar, inclusive, que alguns daqueles que torceram o nariz para as nossas incríveis, fabulosas e chiquérrimas sardinhas, até reconsideraram depois da orgia europeia.
E me pus a pensar: "Mas, afinal, qual o problema? Será mesmo que todas aquelas pessoas não "gostavam muito de sardinha por causa das espinhas"? Não. Definitivamente não. As sardinhas haviam sido cozidas no ponto certo e as espinhas dorsais estavam absolutamente íntegras. Com um mínimo de cuidado poderiam ser retiradas inteiras com a ajuda do garfo. Eu tinha outro palpite.
O meu palpite era que os motivos pelos quais aquelas pessoas repeliram as nossas incríveis, fabulosas e chiquérrimas sardinhas, infelizmente, não eram nada menos do que ignorância e preconceito.
Por isso eu sou vingativa
Ignorância por não conhecerem a absurda riqueza nutricional da sardinha, tampouco as suas diversas possibilidades e versões na alta-gastronomia. Preconceito pela certeza da recusa com base no preço da prima pobre do salmão. Mas, vem cá, isso não deveria ser maravilhoso?
E pus-me a imaginar aquelas mesmas pessoas parcelando passagens aéreas em 24 vezes para cruzarem o oceano e, ao chegarem a Lisboa e descobrirem o quão nobre é comer sardinha, se virem abrindo a mãozinha e pagando em euro para degustar de tal iguaria.
Não pude deixar de imaginar também algumas delas viajando até São Paulo para finalmente realizar o sonho de experimentar o menu degustação de oitocentas pilas no restaurante bapho do chef renomado e descobrirem lá pelas tantas que... "Espere! Mas... aquele peixe defumado com espuma de natas... tinha gosto de... de sardinha! Oh, nãããããããão!!!"
E saírem com aquela cara linda de paisagem na selfie caríssima!
Confesso que sorri, vingada.
Foi quando percebi que a maioria das pessoas já tinha ido embora, e que pela primeira vez havia sobrado muita comida, para a alegria de um time de cozinheiras famintas e livres de preconceito.
E teve banquete de sardinha nas casas de todas elas. Uma festa!