O corpo da cozinheira

Não tem um ditado que diz que em casa de ferreiro o espeto é de pau? Apois, me representa.
É engraçado que uma pessoa que dedica a vida a uma atividade relacionada com a saúde e alimentação alheia escorregue no quiabo justo nessa hora. Mas é que na prática é sempre ao contrário.
Minha equipe de produção é geralmente pequena, e sou a primeira a entrar e a última a sair da cozinha. Isso significa que entro por volta das 6 horas e só desligo o interruptor de boa noite lá pelas 22 horas.
Isso três vezes por semana para atender a apenas um projeto específico de comida congelada. Nestes dias ainda me dou ao luxo de às vezes conseguir honrar uma hora de pilates, dar uma sentadinha, beber água, quiçá fugir até o cinema para espairecer quando a coisa está adiantada. Mas quando essa produção é para uma celebração externa, por exemplo, essa carga horária de 16 horas chega fácil a 22 horas.
E quando eu digo 22 horas não falo de um turno romântico com parada para almoço e 15 minutos de pernas para cima, mas de 22 horas ininterruptas, me alimentando de pé apenas quando começo a ver pontinhos coloridos na visão periférica (quando cozinho em grande escala não sinto fome alguma), lembrando que a última vez que consegui beber água foi quando tomei o remédio pela manhã, e que já tinha esquecido que estava apertada há horas para fazer xixi.
De quando encontrei Jesus
Eu costumo dizer que "encontrei Jesus" quando fiz a minha primeira aula de pilates há coisa de sete anos atrás. E não saberia dizer o que seria de mim não fosse essa soma de memória corporal de ex-atleta com consciência corporal expandida pelo pilates, que é o que me mantém de pé e relativamente bem na cozinha.
Os anos de sedentarismo que se seguiram à minha ruptura com o esporte acabaram por atrofiar o meu corpo, e eu sentia esse encurtamento nas atividades mais corriqueiras, como alcançar uma caixa em cima do guarda-roupa ou tentar alcançar os meus pés quando sentada no chão com as pernas esticadas. Apavorei.
Comecei a sentir dor nos ombros e podia visualizar o movimento constante das facas de corte sobre as tábuas e manipulação de carga de 5kg da frigideira de legumes salteando sobre o lume, como os agentes causadores destas lesões que começavam a se manifestar.
Passei a visualizar, com meus olhos de consciência corporal, faixas de inflamação na região lombar; enxergava o desgaste dos joelhos ao agachar para pegar uma panela sob a pia de forma errada, e sentia o peso do inchaço, ainda que discreto, nas pernas e pés por falta de circulação e da água que esquecia de beber.
Para tornar essa sequência de ui-ui-ui útil para as(os) coleguinhas acometidas(os) pelos mesmos males, pedi ajuda profissional à fisioterapeuta e instrutora de pilates Karine Graça, minha mentora de corpo são.
Vá de retro, hérnia de disco!
Karine confirmou que, "de acordo com a demanda e gestuais do meu trabalho as maiores probabilidades de acometimento estão mesmo na lombar, articulações e tendões dos membros superiores dominantes" já apontadas pelo meu corpo, chamando a minha atenção para o futuro, caso haja falha na missão de condicionar o meu corpo para as atividades exercidas. Vem comigo.
Karine frisa que a sobrecarga e desgaste na lombar podem causar um comprometimento irreversível da cartilagem, vulgo artrose, mas também a uma protusão discal, que pode levar à famigerada hérnia de disco, coisa a se lembrar todas as vezes em que precisemos fazer um simples agachamento, que demanda uma distribuição de carga entre várias articulações e, principalmente, ativação do centro de força (sabe onde fica?).
"Tudo isso pode ser mais simples ou complicado a depender do nosso histórico corporal", lembra.
"Ombro, cotovelo e punho do lado dominante também são muito suceptíveis a lesão por movimentos repetitivos e cargas mais pesadas", gerando artrose e tendinites, que quando não tratadas podem evoluir para um sério acometimento na estrutura do tendão, levando ao seu rompimento parcial ou até mesmo total. Isso significa perda de função do segmento lesionado. Tá entendendo "perda de função"?
Quando perguntei para Karine o que poderia ser feito para evitar tais acometimentos, ela me disse que "substituiria a palavra 'evitar' por 'minimizar' os riscos e os efeitos dessa demanda, afinal cada corpo pode reagir de forma distinta. Daí a importância de um trabalho que desperte o autoconhecimento, já que na minha opinião a forma como nos movimentamos e a postura que adotamos ao longo de nossa existência são reflexos de como lidamos com nossos sentimentos, emoções e experiências de vida. Isso tudo fica impresso em nosso corpo fisico". E aí estão a bioenergética e a microfisioterapia, que não a deixam mentir.
#ficamasdicas
"Qualquer atividade que tenha como princípio o equilíbrio entre força, flexibilidade e resistência muscular, pautada na consciência corporal, seria o ideal para minimizar a demanda do nosso trabalho".
Alongar os músculos mais solicitados nos gestuais repetitivos e na manutenção da postura, antes, durante e depois das atividades; lembrar do sistema circulatório e exercitar a panturrilha, espécie de coração dos membros inferiores, que auxilia no retorno venoso daqueles que permanecem muito tempo de pé; cuidar do sistema cardiorespiratório; cuidar da pele do rosto submetida a temperaturas elevadas (queria aproveitar para mandar um beijo para as minhas últimas dermatologistas que esqueceram de me dizer esse detalhe de usar protetor solar enquanto cozinho, intensificando minha melasma nos últimos doze anos. Beijo, valeu!); muita ingestão de água; respiração e até meditação, mas sobretudo, "pilates, pilates, pilates!"
São as dicas do amor de Karine Graça para zelar pelo corpo da cozinheira.