A grandiosidade de Dior: um estilo que persevera no tempo
Desde o início do século XX até os dias atuais, o museu parece ser a instituição que tem o poder de legitimar o que é ou não considerado arte. Quando o urinol de Marcel Duchamp foi acolhido nesse espeço se descortinou todo um processo de reconhecimento de que o caráter artístico de algo é definido a partir da sua relação social que, de algum modo, se manifesta na institucionalidade do museu ou da galeria de arte. Mesmo que em alguns momentos, como no período da vanguarda, esses espaços tenham sido rejeitados, ainda hoje observamos a presença e a importância da aquiescência dessas instituições no que diz respeito a consagração de algo como artístico ou não.
Nesse sentido, a exposição “Couturier Du Rêve” (“Costureiro do Sonho”, em tradução livre), que celebra os 70 anos da marca Christian Dior, reafirma o entrelaçamento entre a moda e a arte, consagrando a primeira um lugar de destaque no cenário artístico. Demonstra uma vez mais que a produção no campo do vestuário e acessórios requer trabalho, conhecimento e expressão, atributos indispensáveis para um fazer artístico, segundo Alfredo Bosi, inspirado em Luigi Pareyson. Reconhecemos, portanto, que no universo da moda existem “artistas” da forma, pensando essa forma enquanto organicidade que reconduz à unidade elementos que podem ser sentimentos, pensamentos, realidades físicas, coordenados por uma ação que procura a harmonia, segundo as leis que a própria obra sugere.
Modelos criados por John Galliano em 1999
Com cerca de 300 vestidos, a exposição é uma das maiores já realizadas na capital da moda, Paris, no Musée des Arts Décoratifs (Museu de Artes Decorativas, em tradução livre). A mostra foi inaugurada no início de julho e segue em exibição até 07 de janeiro de 2018. A exposição rememora a história da marca e de seu fundador, Christian Dior, exibindo a complexidade e grandiosidade do universo criativo do designer, apresentando além dos vestidos de Alta Costura, uma variedade de artefatos entre manuscritos, fotografias, encartes publicitários, croquis, chapéus, sapatos, frascos de perfume e bijouterias; traz, ainda, um acervo de objetos de artes decorativas, quadros e peças de mobiliário. Ao traçar o histórico da grife, evidencia o trabalho de criação dos outros designers que sucederam Dior e que conseguiram manter o nome e estilo da marca nessas sete décadas de existência.
Looks assinados por Gianfranco Ferré para Dior
Ao percorrer as salas de exibição do Museu de Artes Decorativas vamos entrando cada vez mais profundamente no universo Dior, cujo registro se evidencia, sobretudo, pela valorização da feminilidade, associada à beleza e à liberdade. Um estilo marcado, inicialmente, por uma poética que acentua a cintura do corpo da mulher, ressaltando o busto e o colo, reintroduzindo glamour e leveza a composição da aparência feminina, num período de pós-guerra. Luxo, sofisticação e elegância são elementos indissociáveis da marca que, num primeiro momento, retornou à segunda metade do século 19 para reintroduzir vestidos e saias mais longas e amplas, delineando o corpo feminino. Com o new look - o famoso Tailleur Bar, composto por um casaco de seda bege acinturado e ampla saia preta plissada na altura dos tornozelos, especialmente adornados por sapatos de saltos altos, chapéu e luvas -, tem-se o símbolo Dior e de uma geração. Ainda na década de 1950, inovou mais uma vez, sempre sintonizado com as demandas do momento: introduziu o uso do terno masculino em roupas femininas, sem deixar de conceber tal criação com muita elegância e glamour.
Coleção da marca Raf Simons (2012) para a marca Christian
Cada uma das peças apresentadas na exposição, sublinham e prolongam o olhar de Christian Dior explorando as ligações que ele teceu entre a costura e todas as formas de arte, definindo o traço da grife. Desse modo, constatamos que o estilo envolve a vida espiritual do artista, porque este no seu processo criativo persegue um modo singular, bastante pessoal, unicamente seu e não de outrem, que é o seu modo de formar. E este modo de formar, como atesta Pareyson, ele só conquista ao estabelecer um intenso diálogo com a matéria-prima, através de tentativas, erros e acertos, que vão delineando o seu jeito de produzir que se revela num estilo. O curioso é perceber o quão o estilo Dior persevera entre o passar dos anos, mesmo com a incorporação de diferentes diretores criativos na maison.
De Ives Saint Laurent (1958-1960 - o primeiro a substituir Dior após sua morte) até a recém integrada Maria Grazia Chiuri (2016 -), passando por Marc Bohan (1961-1989), Giafranco Ferré (1989-1996), John Galliano (1997-2011) e Raf Simons (2012-2015), temos a oportunidade de conferir como é possível manter o estilo Dior – aquele que nos faz sempre sonhar -, apesar das singularidades de cada um desses designers. Assim, percebemos como o espírito de uma marca se impõe e é capaz de atravessar o tempo, a história e nossas vidas, configurando silhuetas, estilos e modos de ser próprios.
Renata Pitombo Cidreira é professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de Os sentidos da moda (2005), A sagração da aparência (2011) e As formas da moda (2013), entre outros.