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Pensando Moda

Por Renata Pitombo Cidreira* | Foto: Luciano Carcará | Ag. A TARDE

ACERVO DA COLUNA
Publicado quarta-feira, 22 de agosto de 2018 às 8:21 h • Atualizada em 23/08/2018 às 9:58 | Autor: Renata Pitombo Cidreira* | Foto: Luciano Carcará | Ag. A TARDE

Boa Morte: a força sígnica e espetacular das vestes

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Festa da Boa Morte é um espetáculo cênico, litúrgico e estético
Festa da Boa Morte é um espetáculo cênico, litúrgico e estético -

Quando Jean Baudrillard nos chamou atenção ainda na década de 1960 sobre o fenômeno do gadget, talvez não tivesse clareza do alcance da sua própria reflexão. Em pleno século XXI, não só vislumbramos a postura visionária do autor ao identificar algo que estava acontecendo na sociedade, mas também sua capacidade em elaborar uma ideia que continua extremamente atual. O gadget seria todo objeto caracterizado por uma espécie de inutilidade funcional e por uma dimensão lúdica, nos alerta Baudrillard, sem esquecer, obviamente que no gadget há um privilégio da função sígnica. Refletindo especialmente sobre a sociedade do consumo, o autor nos convida a pensar que todo e qualquer utensílio tem a possibilidade de vir a ser gadget, pois basta que haja um certo apagamento da sua função objetiva a favor de uma função de signo.

Nesse sentido, podemos facilmente compreender que o gadget flerta com o cotidiano nas suas variadas dimensões, sempre de uma forma extremamente espetacular. É sobretudo no regime do que se dar a ver, do que se põe em cena que o gadget floresce. Um outro componente também é essencial na composição da inutilidade funcional atrelada ao lúdico: é a exaltação da novidade. Aliados, cotidiano, espetáculo e novidade constituem uma ambiência cênica e fugaz, em que objetos, pessoas e relações se cruzam de forma dinâmica e contínua. “O que (...) consumimos não é tal espetáculo ou tal imagem em si, mas a virtualidade da sucessão de todos os espetáculos possíveis – e a certeza de que a lei de sucessão e de corte (...) fará com que nada corra o risco de emergir a não ser como espetáculo”.

Ainda que esses dois autores estejam refletindo sobre fenômenos mais relacionados ao ambiente do consumo e aos artefatos que o constitui, acreditamos ser possível reter essas duas noções acionadas por eles, a função sígnica dos objetos e a dimensão espetacularizada dos acontecimentos, para refletir sobre uma manifestação religiosa e cultural que acontece no Recôncavo da Bahia, mais especialmente, na cidade de Cachoeira, sempre no mês de agosto, entre os dias 13 e 16: trata-se da Festa da Boa Morte.

A Irmandade da Boa Morte é uma associação leiga que se organiza com o objetivo de desenvolver uma devoção a um santo especial; é uma confraria religiosa composta por mulheres negras, que exercem um culto mariano, resquício dos arquétipos tecidos pelos jesuítas e vivenciados pela devoção portuguesa, ao migrar para Cachoeira. Desse modo, podemos considera-la como um espaço de preservação de tradições, mas ao mesmo tempo, de ressignificação de práticas religiosas, que promove uma certa sociabilidade e solidariedade.

O sincretismo se estabelece na medida em que as integrantes da Irmandade estão associadas ao culto do candomblé, sendo muitas delas Mães-de-Santo. E o mais curioso é a forma harmoniosa como essa síntese religiosa se efetiva, manifestando-se como um exemplo emblemático de respeito e convivência de diferentes crenças e tradições.

Durante os três primeiros dias da festa, a cidade de Cachoeira se transforma e suas ruas são tomadas por turistas e moradores que acompanham as procissões em homenagem à Maria. Da reunião nas escadarias ao pé da capela D’Ajuda, prosseguimos em caminhada pelas ruas da cidade heroica, chegando a Igreja do lado da sede da Irmandade para a primeira missa dos festejos. Todas de branco, as irmãs fazem suas preces e lembram de suas companheiras que já não mais estão entre nós. As vigílias fúnebres sempre foram importantes na história da humanidade. Nas confrarias e irmandades ocupam um momento importante: a consagração do tempo aos cuidados que se tem com os mortos. As vestes na cor branca são símbolo de respeito e luto, carregando, assim, vestígios de uma herança mulçumana.

Na noite da terça-feira, dia 14 de agosto, mais uma missa, seguida de procissão, em louvor à Maria. Momento de luto reverenciado pelas irmãs. Neste ato, usam seus trajes de gala, as chamadas becas, saia preta plissada, bata, bicos brancos, pano-da-costa preto forrado de vermelho, calçam os chagrins brancos e não usam joias. No dia 15, a Assunção de Maria, as irmãs também usam a roupa de gala, com muitos adereços, sinônimo de riqueza e beleza. O traje de beca tem um destaque e um significado especial para a Irmandade, pois uma irmã só é reconhecida como tal após o recebimento da indumentária, que é entregue em um ritual interno. A beca constitui um dos principais símbolos da Irmandade.

O espetáculo cênico, litúrgico e estético verificado no mês de agosto no Recôncavo Baiano é um exemplo de como uma realização cultural pode ancorar formas específicas de inventividade e tradição; força sígnica e espetacularidade. No mês em que se realiza as festividades à Nossa Senhora, os corpos negros da Irmandade da Boa Morte, se adornam e fazem parte de um espetáculo público, em que as ruas servem de palco ao desfile simbólico de uma tradição religiosa que ancorada no passado se atualiza no presente.

Renata Pitombo Cidreira é professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de "Os sentidos da moda" (2005), "A sagração da aparência" (2011) e "As formas da moda" (2013), entre outros.

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