Entre imagens que nos confortam e assombram: a potência da fotografia de moda
“Toda fotografia é um certificado de presença”. Tal afirmação de Roland Barthes parece traduzir de forma contundente tudo o que a fotografia é. Ao que nos parece, trata-se aqui não apenas de ratificar o que ela representa, mas de chamar atenção para a presença, ou seja, para o fato de que foi necessário um olho, um corpo e um clique para captar aquele instante, trata-se muito mais desse olho encarnado que configura um real naquele momento e que o eterniza...
Desse modo, Barthes reconhece o aspecto indicial de toda fotografia, que reverbera no argumento da dimensão documental da foto, e da sua capacidade de registro, mas parece ir um pouco mais além, apresentando sutilmente a força plasmadora daquele que produz a imagem, com toda sua carga histórica, social e afetiva, condensado e eternizado num instante determinado.
Talvez a riqueza fotográfica esteja justamente nesse entrecruzamento de presenças que, com suas vitalidades, estabelecem um momento secreto de trocas, de compartilhamentos. Vivências às vezes distintas, distantes e estranhas umas as outras que se veem e se sentem interligadas por um artefato que funciona como uma espécie de vínculo entre mundos.
Tal intensidade comunicativa pode ser constatada de forma exemplar nas fotografias de Davide Sorrenti, considerado um prodígio nos anos 1990, sobretudo nos registros vocacionados para a área da moda. Parte da sua produção poderá ser contemplada, muito em breve, a partir do documentário See Know Evil, dirigido por Charlie Curran. A produção não só exibirá algumas das imagens de Sorrenti, mas pretende também ser um verdadeiro retrato íntimo do jovem fotógrafo, através de entrevistas com as pessoas mais próximas dele.
Davide Sorrenti provocou muito rebuliço no universo fashion na década de 1990, introduzindo uma poética crua, mas com muito glamour nas suas fotografias. Suas imagens de modelos como Milla Jovovich e Jamie King (com quem teve um intenso affair), seduziu revistas de arte e comportamento jovem, como Interview e i-D, que logo passaram a publicá-las. Com apenas 20 anos de idade, Sorrenti atingiu um sucesso avassalador.
Nascido em Nápoles, na Itália, Davide Sorrenti foi viver em Nova York com a família aos 18 anos: o irmão Mario (fotógrafo), a irmã Vanina (stylist) e a mãe Francesca, estilista da grife Fiorucci e também reconhecida fotógrafa. Totalmente envolvido com o ambiente da moda e da fotografia, com sua câmera analógica, o jovem fotógrafo conquistou o olhar dos produtores de moda, dos críticos e do espectador em geral. Suas fotos, inspiradas no estilo de Nan Goldim, traziam enquadramentos despreocupados, iluminação precária, entre outros elementos de natureza técnica restrita.
Eram o registro do modo de vida de seus amigos; imagens do cotidiano, cenas banais e ordinárias dos dias que passam, imprimindo uma poética da imperfeição que reage à irrealidade de uma beleza glamourizada e, muitas vezes, inatingível; bem como uma poética da intimidade em que as relações próximas e cenas da vida de todo dia se fazem presentes. Assim, como já observava André Rouillé, “os grandes relatos cedem lugar, na arte, à proliferação de pequenos relatos e ao emprego crescente da fotografia para lhes dar corpo e forma”.
Diante dessas imagens podemos nos perguntar se efetivamente elas nos confortam ou nos assombram? Elas tem, de fato, uma capacidade mobilizadora ou esterilizante?; se propiciam um acesso ativo à compreensão da realidade ou se elas destituem de realidade todas as coisas até chegar à anestesia, deslocadas para a condição de produto de contemplação? Essa contemplação é passiva, apaziguadora ou inquietante e mobilizadora?. Aqui sim poderíamos nos perguntar se elas são estéticas ou estetizantes, no sentido de transformar as coisas, pessoas e situações fotografadas em um espetáculo de que se pode usufruir sem se sentir vitalmente implicado.
Diante dessas questões, o que nos parece é que o mais instigante do trabalho de Davide Sorrenti seja o fato de nos posicionar diante de imagens (e de realidades) que nos desestabilizam e nos levam a reflexão. Mergulhado no ambiente, convivendo com as pessoas que fotografa, Sorrenti sente e apresenta de forma intensa a nobreza dos corpos, dos rostos e dos gestos. Suas fotos incomodam.
E para nós, espectadores de suas imagens é justamente no elo entre registro, vigor de uma presença e plasticidade, força configuradora, que nos transportamos para mundos vividos e outros imaginados, numa dinâmica que conjuga espaço e tempo como tessituras subjetivas, ainda que respaldadas por valores coletivos, como paisagem expressiva formada por linhas sensíveis, por estéticas da existência!
* Renata Pitombo Cidreira é professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de Os sentidos da moda (2005), A sagração da aparência (2011) e As formas da moda (2013), entre outros.