O lugar do belo na contemporaneidade: Os sapatos de Middlemass
Sapatos excêntricos e maravilhosamente adornados. Esses foram os itens que chamaram a atenção da fotógrafa britânica de moda, Suzanne Middlemass, e que acabaram sendo o tema do seu recente livro It’s All About Shoes (É tudo sobre sapatos), publicado pela editora Tu Neues Verlag, com um total de 256 páginas. Nas 300 imagens de sapatos, o que realmente provoca nosso olhar é a diversidade de modelos e a criatividade na composição desses adereços que emolduram nossos pés.
Fotos: Divulgação
As fotografias foram registradas durante as semanas de moda, e segundo as palavras da autora, as imagens procuram capturar “essencialmente algo que saia fora da caixa, que se destaque no reino do comum”. São opções audaciosas, divertidas, estranhas, bonitas e, por vezes, bizarras, que encontramos na seleção de Suzanne Middlemass as quais, invariavelmente, sobressaem-se nas ruas das cidades. Essa mistura eclética de estilos nos faz pensar sobre o lugar do belo na contemporaneidade pois, diante de tantas imagens, o que nos chama mais atenção é a ousadia das formas, independemtemente da sua beleza.
Promessa de aventura, um par de sapatos pode determinar um estilo de vida. E, certamente, mais do que cumprir uma determinada funcionalidade, de proteção dos pés das asperezas das ruas, os sapatos são “um reflexo da nossa história social e um álbum de lembranças de um momento”. Como afirma Linda O’Keefe, eles nos restituem o passado, desde os primeiros passos num sapato de criança ou a emoção que ressurge intacta da caixa de origem dos escarpins do seu casamento”. De fato, sabemos que um novo par de sapatos nos abre a porta da imaginação, nos reenviando ao passado, mas também nos lançando para o futuro, na imediatez do presente. Mais do que uma necessidade, a compra desses acessórios nos seduz pela possibilidade de transformação que nos acena. Assim, em cada modelo, a promessa de novas experiências.
Mas afinal, o que determina exatamente as nossas escolhas na contemporaneidade? Quais critérios utilizamos para usar um par de sapatos? Será que pensamos no conforto dos nossos pés e do nosso corpo como um todo? Será a sustentabilidade o que nos guia? Que relevância tem o preço do sapato na hora da compra? Será a adequação ao nosso estilo de vida que tem mais importância? Ao contemplarmos as imagens selecionadas por Suzanne Middlemass e motivados por esses questionamentos, ao menos um elemento parece preponderante: ser diferente.
Não por acaso, tal constatação nos reenvia quase automaticamente a outra problematização: E a beleza? Ao que parece, estamos assistindo, na contemporaneidade, um certo deslocamento em que o belo cede espaço para tudo aquilo que é impactante, que causa surpresa e que nos põe em estado de crise. Nesse sentido, a associação do belo com o que faz nascer um sentimento de prazer ou, pelo menos, de satisfação, ou de gratificação, parece estar fora de lugar e não mais se adequar as formas de expressão da atualidade que procuram provocar espanto.
Mas não esqueçamos do humor e da ironia, que é seu estado máximo. Na vida e, portanto, na moda da atualidade, como nos lembra Jean Galard, desenvolve-se uma cultura da fantasia, do efêmero, da paródia leve. Tanto na publicidade, como na moda, um mesmo tom divertido convida a não dramatizer nada e a não se levar a sério. Assim, parece que o espanto e a diversão são os dois grandes mobilizadores das produções criativas de um modo geral e também no mundo da moda.
Talvez tal reação tenha relação com um certo momento em que a beleza se volatiza, e que se encontra em toda parte de forma apaziguante e conciliadora. Desse modo, é preciso provocar algo intenso, inquietante e perturbador ou, ao menos, divertido e irônico. Esses são, de fato, os principais sentimentos evocados pelos sapatos registrados por Middlemass.
Ainda assim, uma pergunta persiste: Mas será mesmo que não temos mais espaço para a beleza…?
Renata Pitombo Cidreira é professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de Os sentidos da moda (2005), A sagração da aparência (2011) e As formas da moda (2013), entre outros títulos.