Os corpos vestidos de Seydou Keita: a força e a elegância da simplicidade
Menos é mais! Essa frase do arquiteto alemão, naturalizado americano, Ludwig Mies van der Rohe, expressa com exatidão a dimensão do trabalho do fotógrafo Seydou Keita, reconhecido por seus retratos. Além disso, menos é mais, também se aplica, ainda que possa parecer paradoxal, ao glamouroso universo da moda em que se prima pela elegância das formas. Desse modo, nos parece extremamente pertinente reunir esses dois âmbitos, a fotografia e a moda, a partir da produção de Keita, evidenciando como, algumas vezes, na simplicidade pode residir uma força plástica e emocional incontornáveis.
Africano de Bamako, capital do Mali, Seydou Keita começou a fotografar ainda muito jovem, de maneira autodidata, com uma câmara fotográfica Kodak Brownie, que lhe foi dada por um tio. As fotos eram realizadas de forma improvisada e, aos poucos, a atividade foi sendo aprimorada por Keita, que não só registrava como também revelava os negativos. O seu público era diversificado, atingindo desde a pequena-burguesia em ascensão até pessoas mais humildes. Em 1948 monta seu estúdio, mas antes desse espaço mais convencional, Keita registrava suas imagens no pátio na frente da sua casa, com elementos bastante restritos.
Em muitos dos retratos realizados pelo fotógrafo, entre 1948 e 1962, podemos observar o ambiente simples em que os cliques eram acionados: chão batido, muros descascados, poças d’água e até mesmo alguma sujeira da rua comparecem nas imagens. No entanto, essa simplicidade e, muitas vezes, a escassez de elementos, nunca foram dados restritivos ao trabalho criativo de Keita; muito pelo contrário. É nessa ambiência de ausência de recursos que se descortinam soluções formais repletas de força e elegância.
Parte da sua produção pode ser conferida na mostra Seydou Keita, no Instituto Moreira Salles, que teve inauguração na última terça-feira, dia 17 de abril, na galeria 7 do Instituto, com a presença e visita guiada dos dois curadores: Jacques Leenhardt, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, e Samuel Titan Jr., coordenador executivo cultural do IMS. No total, são 130 obras, incluindo 48 tiragens vintage, em formato de 18 x 13 cm; e 88 fotografias ampliadas na França, sob a supervisão de Keita, ao longo da década de 1990.
Embora não seja considerado um fotógrafo de moda, muitas das suas imagens revelam os corpos, os modos de vestir e os gostos do povo malinês. A riqueza e a complexidade da estamparia africana se mescla aos tecidos holandeses e franceses, por exemplo, num mosaico de cores e formas surpreendentes. A fotografia etnográfica em preto e branco de Keita retrata aspectos da correlação entre tradição e novidade nos corpos vestidos, cujos movimentos e disposições plásticas exalam a historicidade de um povo na sua dinâmica de transformação. São camadas de tecidos, camadas de história, camadas de corpos.
Esse corpo em presença que se faz duplo a partir do registro fotográfico, manifesta e representa “a certeza da existência do mundo circundante com todos os seus objetos e relações sociais”, como destaca Gunter Gebauer e Christoph Wulf. “Os movimentos [corporais] são gestos de certeza”, ao que acrescentaríamos: de uma vivência e de uma experiência que produz relações com as coisas e com os outros homens, bem como consolida e modeliza referências já dadas. Vale ressaltar que os corpos retratados por Keita eram dirigidos por ele que cuidava da composição da cena como um todo, procurando ressonâncias e configurações entre os vestidos das mulheres ricamente ornados e o fundo cenográfico, geralmente composto por tecidos estampados.
Nas suas imagens, a certeza também de que a composição da aparência de cada um de nós, em alguma medida, traduz nosso modo de ser e de estar no mundo: em conexão com o nosso tempo e com a comunidade na qual nos inserimos, estamos sempre manifestando nosso aqui e agora, num jogo de pertencimento. Mas as fotos de Seydou Keita também reforçam a necessidade da expressão e do registro de uma visualidade corporal que, passa, necessariamente, pela instância vestimentar e do adorno. É mais uma vez a confirmação da roupa, da moda e do corpo vestido em exibição como elementos constitutivos e definidores do nosso tempo – de uma contemporaneidade regida pela força da imagem e pela potência da imagem de si em circulação, estabelecendo vínculos e redes entre os vários povos dos continentes.
* Renata Pitombo Cidreira é professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de Os sentidos da moda (2005), A sagração da aparência (2011) e As formas da moda (2013), entre outros.