Um diálogo entre o artesanato e a moda
Em tempos de velocidade, instantaneidade e novidade será que podemos pensar na tradição como um valor a preservar? Esse é um questionamento que perpassa osprocessos artesanais e que vem gerando um intenso debate no mundo da moda, pois, finalmente, parecem ter descoberto que já vivemos um esgotamento da necessidade de inovação constante, sem o redimensionamento de experiências anteriores.
Nesse cenário, a cultura artesanal do labirinto, um tipo de renda que se caracteriza por desfiar o tecido, tem sido bastante valorizada na região de Chã dos Pereira, na Paraíba. Essa tradição se mantém de pé, sobretudo, pelo trabalho incansável de dona Antonia Ribeiro Mendonça (foto), de 84 anos, que aprendeu a técnica do labirinto aos 12 anos de idade, com sua madrinha, e agradece pela conquista de um saber fazer que lhe garante o sustento com a habilidade das mãos. Mulher de fibra, dona Antonia é exemplo de força e delicadeza a um só tempo.
A produção é variada e contínua, afirma dona Antonia, que sempre tem algumas peças que ela acabou de rendar. Em geral são paninhos de mesa, passadeiras, panos de cesta de pão, toalhas de mesa e também itens do vestuário feminino, como blusas. Os desenhos são os mais diversos, às vezes da escolha da artesã ou do cliente que faz a encomenda.
Além do trabalho de dona Antonia, encontramos outras iniciativas que procuram agregar design ao fazer artesanal. Ainda na região da Paraíba, gostaríamos de ressaltar outro empreendimento que encontramos na cidade de João Pessoa, que associa design ao algodão colorido, dispensando processos de tingimento e, portanto, economizando água no processo de acabamento da malha, buscando uma produção mais sustentável. O destaque é para a marca paraibana Edclée Carvalho cujas peças são, em grande maioria, confeccionadas com o algodão colorido e pintadas a mão, garantindo exclusividade às roupas, que transmitem muita sensibilidade e criatividade. A designer procura ressignificar as tendências, atingindo o público feminino em suas várias faixas etárias.
Esses trabalhos, como tantos outros, nos convidam a pensar na relação cada vez mais estreita entre a moda e o artesanato. Ao revisitar um texto de Mário de Andrade de 1938, em que ele fala do artista e do artesão, vislumbramos esse lugar da moda que atualmente trafega com mais intensidade nesse espaço híbrido em que há um diálogo constante entre o designer (artista) e o artesão. Mário de Andrade nos ensina que o artesanato é imprescindível para que exista um artista verdadeiro, pois é preciso conhecer perfeitamente os processos, as exigências, os segredos do material que vai mover. Mas também é necessário, nos lembra o escritor, o conhecimento abalizado de como historicamente as épocas e os artistas resolveram os seus problemas de artefazer. Além disso, é indispensável reconhecer que o que diferencia a arte do artesanato é a solução pessoal do artista no fazer a obra de arte. "Esta faz parte do 'talento' de cada um, embora não seja todo ele. É de todas as regiões da técnica a mais sutil, a mais trágica, porque ao mesmo tempo imprescindível e inensinável".
Como enfatiza Luigi Pareyson, o êxito de uma obra de arte está na capacidade que o artista tem em alcançar um modo de formar próprio, no diálogo que estabelece com a matéria prima com a qual trabalha. Assim, ele encontra seu modo de formar formando, no próprio ato de produção, ao que ele chama de formatividade. E também na moda reconhecemos designers que conquistam seu modo de formar, garantindo às peças uma artisticidade. Nesse sentido, talvez um dos grandes desafios da moda seja o de conseguir restaurar o elo entre techné e inventividade, entre artesão e designer, unidos pela força da plasticidade de suas formas. Tradição e inovação se constituem enquanto elementos da potência criadora desses artistas da roupa que vão, de algum modo, responder questões impostas pela sua época, pelo seu momento histórico, além de anteciparem, em alguns casos, mudanças de perspectivas possíveis, acenando com alternativas para novos modos de existência. Em dona Antonia e em Edclée vislumbramos a forca e vigência da tradição e o frescor da inovação, numa dinâmica criativa e de destreza técnica que produzem belas formas.
Renata Pitombo Cidreira é professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de Os sentidos da moda (2005), A sagração da aparência (2011) e As formas da moda (2013), entre outros.