Um plissado para chamar de meu: o Delphos de Fortuny
“De todos os vestidos que Madame Guermantes usava, o que parecia responder mais a uma certa intenção, e ter um significado especial, eram aqueles que Fortuny fazia a partir de antigos desenhos de Veneza. Antes de sonhar com este ou este, a mulher tinha que fazer uma escolha entre os vestidos mais ou menos semelhantes, mas profundamente individuais, cada um, aos quais se podia nomear” (Marcel Proust, A Prisioneira, 1923). Este trecho de Marcel Proust destaca a genialidade do costureiro Mariano Fortuny, espanhol de nascimento, mas Veneziano por adoção.
As peças de Fortuny, tão especialmente emblemáticas e únicas, capazes de serem nominadas, são as protagonistas da exposição "Fortuny, un Espagnol à Venise" (Fortuny, um espanhol em Veneza), que esteve em cartaz no Palais Galliera, Museu da Moda da Cidade de Paris, até o dia 07 de janeiro de 2018. A retrospectiva do trabalho do estilista apresentou cerca de 100 peças que revelam a diversidade de sua inspiração.
Entre os destaques da sua poética está a reinterpretação dos estilos e motivos da Grécia Antiga, da Idade Média e do Renascimento, criando peças atemporais, com traços simples, linhas suaves e retas e cortes concisos, apostando em silhuetas alongadas com uma modelagem que privilegia os movimentos do corpo. Liberto, o corpo de Fortuny é revestido por tecidos altamente trabalhados, a partir de técnicas de impressão. Entre suas criações mais celebradas, encontra-se o vestido Delphos, todo em seda plissada, cuja base se afunila no formato de uma corola. Criado no final da Primeira Grande Guerra, mais precisamente em 1907 (e patenteado em 1909), o estilo do vestido tem inspiração nas esculturas gregas, sobretudo a escultura helenística clássica do Auriga de Delfos. O plissado (dobras permanentes) inigualável envolve trabalho de calor, pressão e varas de cerâmica, técnicas que permanecem e tem sido retomadas por estilistas contemporâneos, a exemplo de Issey Miyake, Pierpaollo Piccioli e Maria Grazia Chiuri.
Outros trabalhos reconhecidos do estilista são os quimonos, com estampas riquíssimas, que revestem e moldam suavemente as curvas do corpo, a exemplo do Kosat, de 1910. Também o seu cachecol, feito em seda, com motivos inspirados na cerâmica Kamares do período minoano é uma peça diferenciada, na qual se desvelam os traços poéticos de Fortuny.
Artista e artesão a um só tempo, Mariano Fortuny reúne capacidade e conhecimentos técnicos, bem como inventividade e inspiração, o que garante a suas peças um estilo personalíssimo e irrepetível, um modo de formar todo seu. Ele conhece os processos, as exigências, os segredos do material que vai manipular e, ao mesmo tempo, consegue encontrar a solução pessoal no seu fazer, aquilo que, como diria Mario de Andrade, é a região do “talento” de cada um, “sutil e trágica, porque ao mesmo tempo imprescindível e inensinável”. O seu preciosismo se revela desde a preocupação na elaboração das tintas, até ao perfeccionismo da costura das pequenas pérolas de vidro trazidas de Murano, incorporadas no acabamento das roupas.
A exposição "Fortuny, un Espagnol à Venise" (Fortuny, um espanhol em Veneza) permitiu ao espectador conhecer e admirar o refinamento técnico do estilista que se esmera em descortinar os mistérios dos arranjos cromáticos, importando pigmentos do Brasil, palha da Bretanha e índigo da Índia, entre outros dispositivos característicos do modo de formar do criador, como a minúcia com que tratava a urdidura interna dos têxteis que comparece na sua invenção do veludo brocado. Na modelagem, togas, caftans, túnicas, exalando inspirações gregas e orientais.
O plissado, marca do estilo de Fortuny, nos reenvia a própria noção de dobra que vai ser explorada por Foucault, como essa condição que explicita o que há entre, ou seja, a reversibilidade entre o fora e o dentro, o eu e o outrem. Nas palavras de Foucault: “a flexão do fora para criar um dentro”. Desse modo, podemos inferir que o estilista incorpora no seu próprio modo de formar, essa relação entre o já conhecido e familiar e aquilo que lhe é exterior, estranho, e é justamente dessa relação, desse entrecruzamento que encontra sua solução pessoal na arte de costurar.
A presença de Fortuny na obra de Proust revela esse desejo de ativação do belo, a partir, é verdade, de uma certa dessacralização da pintura renascentista que agora se materializava em objetos de uso cotidiano, como os tecidos e vestidos. Mas não só: Fortuny e suas vestes atemporais confrontam a provisoriedade da moda e a faz transpor o efêmero que a habita; além de atestar a importância da roupa e da moda enquanto artefato e campo em que a criatividade, a habilidade e a imaginação humanas nos presenteiam com formas exitosas e que atiçam nossa contemplação.
Renata Pitombo Cidreira é professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de Os sentidos da moda (2005), A sagração da aparência (2011) e As formas da moda (2013), entre outros.