A árdua luta do Nego
Confira a coluna de Ângelo Paz, jornalista e doutorando em Ciências da Comunicação
Ainda pequeno o canto “Negooo” mexia comigo nas arquibancadas. Eu não sabia exatamente o por que, mas ali nascia um ponto de identificação com o Vitória e com a minha própria existência. Afinal, como bem escreveu o craque Jorge Amado no romance Bahia de Todos os Santos, a influência do negro em Salvador sente-se em toda parte. Não apenas no aspecto físico da cidade, mas na sua vida. Passados quase 80 anos da publicação da obra, é uma felicidade ver a referência afro cada ano mais forte na metrópole mais negra fora do continente africano.
Referência essa que está, também, no futebol e entre todes que cantam “Negoo”, importante além do ponto de vista emotivo no imaginário de quem torce pelo Vitória. É justamente o povo negro que faz do Leão um clube popular e oferece o combustível essencial para o modesto elenco resistir na elite de um futebol brasileiro dominado por orçamentos fartos, alguns oriundos do capital estrangeiro. Não é fácil, assim como as grandes lutas nunca foram. Olhemos só para o dia da Consciência Negra, pela primeira vez feriado nacional na última quarta-feira. Foram exatos 53 anos de espera.
A data é uma reivindicação social manifesta em 1971 por parte de um grupo de estudantes e militantes negros de Porto Alegre em plena ditadura militar. Árdua caminhada, com muita luta, derrotas e avanços pelo caminho, características próprias da nossa vida cotidiana e, mais uma vez, do futebol. E a torcida mais negra do Brasil (segundo pesquisa realizada pelo Detafolha, 2019) tem motivos de sobra, assim como a comunidade negra, para seguir em celebração de suas lutas para além do enfim feriado nacional.
Curiosamente, foi no histórico último dia 20 que os Rubro-negros entoaram o supracitado grito de guerra com mais alívio neste ano de retorno à primeira prateleira do futebol nacional. Em Criciúma, a oitava vitória no returno trouxe para o Barradão uma situação favorável de permanência, como próprio se referiu o técnico Thiago Carpini. Pela primeira vez em um Brasileiro marcado pela tensão o Vitória alcançou a 12ª colocação. E melhor, abriu quatro pontos de vantagem para o primeiro time da zona de rebaixamento restando agora apenas quatro rodadas para o fim da competição.
A luta, árdua, segue. Amanhã será hora de enfrentar o clube que melhor representa o referido domínio do capital estrangeiro em nosso futebol. Antes mergulhado em dívidas e longe do protagonismo, o atual milionário Botafogo ostenta um time de jogadores com grife de seleção. Este é o principal ingrediente para o técnico português Arthur Jorge conseguir colocar em prática o melhor futebol da América do Sul no momento. Não à toa, além da ponta do Brasileiro, está na final da Libertadores.
Ah, mas não duvide do Nego mais querido da Bahia. Humilde e lutador, já mostrou capacidade para superar times tecnicamente superiores neste segundo turno. É com essa confiança que os operários do Leão vão pisar no tapetinho do Nilton Santos amanhã. Será preciso correr e lutar mais, típico de quem aprendeu a receita para transpor as desvantagens. Assim o povo negro do Brasil vem fazendo há séculos neste país. Assim como o Nego precisa seguir fazendo para mostrar que retornou à elite mostrar a sua cara pelos campos do Brasil que esse grito já se ouviu.