A tragédia de Chapecó, o bom jornalismo e as hienas da internet
Como jornalista perdi a conta de quantos acidentes aéreos cobri, como repórter ou como editor. O voo 402 da TAM em 1996; o 1907 da Gol em 2006; o 3054 da TAM que explodiu em Congonhas, em 2007. Fora inúmeros acidentes aéreos pelo mundo entre 2001 e 2010 (incluindo 11 de Setembro).
No caso das tragédias domésticas, como trabalhávamos on-line, sempre soubemos dos riscos desse tipo de cobertura. Um erro poderia macular não só nossas carreiras, mas também o nome do jornal em que trabalhávamos. Por isso nos protegíamos com cinco pilares. A saber:
1) não fazer especulações, pois não temos especialistas em aviação na equipe; 2) só publicar informações oficiais; 3) abrir canais de comunicação com os familiares para que deem informações sobre parentes nos voos; 4) jamais publicar imagens de corpos; 5) publicar assim que possível uma lista oficial de mortos e sobreviventes
Os leitores de A TARDE devem se perguntar: “Ora, seu Feltrin, mas isso é o mínimo que vocês deveriam fazer.” Estão certos, queridos e queridas! Deveria ser o mínimo, mas no mundo real não é assim. São cada vez mais raras as coberturas de tragédias feitas com ponderação e respeito pela imprensa.
Não é à toa que nos filmes de Hollywood repórteres pareçam hienas atacando uma vítima, munidos com seus microfones, blocos e gravadores. Não é por acaso que dei ao livro que escrevi em 2013 o título: Como Lidar com Crises, Jornalistas e Outros Predadores (editora Bella). Porque é exatamente isso que o jornalista é: uma espécie de predador. Pelo bem ou pelo mal.
Há um misto de fatores que induz jornalistas ao erro, se me permitem explicar. Dificuldade em obter informações oficiais (especialmente em locais ermos, como a selva); ansiedade de dar uma informação exclusiva ("furo”); além do risco natural do nervosismo e erro num momento como esse.
No caso da tragédia desta semana, muitos desses erros habituais estiveram novamente no ar, mas também houve coberturas louváveis.
A começar pela Fox Sports, que perdeu seis jornalistas no acidente. A equipe que ficou ao vivo mostrou um gigantesco profissionalismo, enquanto noticiava a morte de seus amigos.
O jovem canal pago Esporte Interativo, da Turner, também foi exemplo de civilidade ao declarar que não entrevistaria nenhum parente dos jogadores mortos, pois não queria expor familiares em momento tão doloroso.
Mesmo o SBT, primeira TV aberta a noticiar o sumiço do avião, conseguiu adotar um tom cuidadoso e respeitoso do começo ao fim.
Por fim, a Globo e o Jornal Nacional, cuja edição da última terça poderia até virar uma cátedra de jornalismo, para ser estudada por gerações futuras, de como fazer uma cobertura completa, humanista, emocionante e com zero sensacionalismo.
Estou certo que muitos de vocês que estão lendo esta coluna choraram copiosamente durante o JN, especialmente na linda homenagem que a equipe prestou às vítimas e familiares. Eu mesmo me debulhei em lágrimas.
Grosserias
Do lado negro da força, porém, vimos também, em TVs locais e sites, imagens de repórteres grosseiros e insensíveis, invadindo casas de familiares dos jogadores, enfiando microfones na cara de pessoas aos prantos; fazendo perguntas cretinas como: “Como você está se sentindo?”
Muita baixaria ficou para a internet. Além de fotos de corpos destroçados que se espalharam (pela enésima vez), um site chamado Catraca Livre (que, aliás, eu vi nascer e ajudei a divulgar na década passada) batizou uma galeria de imagens dos jogadores com títulos do tipo “O último dia de vida dessas pessoas”; e colocou um vídeo real de uma gravação de uma queda de um outro avião.
Criticada, a equipe do site ainda “peitou” internautas, dizendo que estava fazendo jornalismo. Quando perdia dezenas de milhares de fãs no Facebook, o site ainda chegou a se justificar, dizendo que “quem nunca errou que atire a primeira pedra”.
Quando as críticas se tornaram incontroláveis a equipe ainda tentou uma última cartada tacanha: acusou quem estava criticando o site de estar desunindo a esquerda. Veja só a que ponto chega a boçalidade e a insensibilidade: de repente não interessava mais os 71 mortos e os milhares de atingidos pela tragédia em Chapecó e Brasil afora.
Parentes, irmãos, filhos dos mortos de repente haviam se tornado um detalhe. O importante era não “desunir” a esquerda. Não sei se é pra rir ou chorar. Devo ser bem velho porque no meu tempo jornalista tinha de ser isento, crítico e apartidário.
Enquanto escrevo esta coluna, o dito site já perdeu cerca de 120 mil fãs. É até pouco para o tamanho da agressão às vítimas e familiares de Chapecó, e, principalmente, pelo crime hediondo cometido contra o bom jornalismo.