O Judas da velha Salvador | A TARDE
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O Judas da velha Salvador

Publicado domingo, 05 de abril de 2015 às 10:24 h | Autor: .

Pena que no sábado de Aleluia, anterior a este domingo de Páscoa, já não se cultive, como em outros tempos, a queima do Judas feito em forma de boneco, uma tradição trazida pelos lusitanos para o Brasil assim que aqui aportaram.

Até bem pouco se comemorava a queima do Judas Iscariotes pela traição ao Salvador. Seria, neste sábado, simbolizado pelos corruptos e uma boa quantidade de políticos ávidos pela roubalheira.

Aliás, os políticos sempre foram representados como a imagem do boneco malhado e queimado pelo povo não somente aqui, mas nos estados e municípios, Brasil afora.
Um navegador holandês aportou na Baía de Todos-os-Santos em 1807 e aqui permaneceu por três anos sob guarda, porque, no ano seguinte, 1808, D. João VI chegou com sua grande comitiva da sua corte lusa em fuga para o Brasil. Temia que as forças napoleônicas, em guerra com a Inglaterra, invadissem Lisboa.

O navio do holandês sofrera avarias e entrara na Baía de Todos-os-Santos para consertar o mastro e outras necessidades da embarcação. Como a corte portuguesa viera acompanhada, por precaução, por um navio de guerra inglês, a bandeira da Holanda fora avistada, à distância, pelo capitão do navio. Os holandeses tinham boas relações com a Inglaterra, embora estivessem à margem da guerra napoleônica. A sua embarcação, consequentemente, foi apreendida e ficara na cidade de Salvador durante três anos, até ser liberada.

Conto esta história a propósito da malhação do Judas. Sem nada a fazer nos três anos, um marujo holandês, Ver Huell, estava encarregado de relatar a viagem e desenhar os locais visitados.

Dedicou-se a relatar como vivia a população de Salvador do ano de 1807, quando Monte Serrat ficava distante e era onde os portugueses tinham chácaras; a Igreja de São Pedro (Praça da Piedade) era na época muito arborizada e de lá se avistava a baía; o atual Corredor da Vitória era mata virgem; e a Graça, uma espécie de belvedere de onde se observava, entre as árvores frondosas, o Oceano Atlântico, antes da entrada da Baía da Todos-os-Santos.

Devo, num parêntese, agradecer o belo livro sobre Salvador de outros tempos ao meu amigo secretário de Educação, Oswaldo Barreto. Um presente incomum.

Ver Huell conta as manifestações festivas da velha Salvador. O entrudo (carnaval), normalmente comemorado por escravos libertos, e a malhação de Judas. A cidade eram só festejos a propósito de tudo. A alegria, uma forma de os escravos, libertos ou não, extravasarem o sentimento de agradecimento à vida, embora explorados.

Conta Huell: "Os nossos marinheiros já tinham visto bonecos pendurados pela Cidade Baixa, todos representando Judas e assim , sem demora, eles resolveram produzir um boneco igual aos demais, pendurando em seguida aquela curiosa representação do traidor (trajada como um marujo holandês) do lado de fora de uma das janelas da nossa casa. Foi-se dito, também, que em uma determinada hora do dia, aquela figura deveria ser baixada. Eles resolveram continuar seguindo os exemplo dos portugueses naquele costume. Porém, mal o boneco tocou no chão, todos os trabalhadores do estaleiro (que consertavam a embarcação deles) se aproximaram num instante. O Judas de palha foi rasgado em milhares de pedaços, perdendo-se com isto uma camisa muito boa e também uma calça. O dissimulado senhorio recebeu uma severa repreensão, pois ele havia encoberto premeditadamente o resultado da descida do boneco".

Continua: "Na cidade (Salvador) reinava a barbárie. O Judas, sob uma enxurrada de blasfêmias, era arrastado das ruas destruídas pela plebe. À noite teve lugar a uma curiosa solenidade à frente de um dos conventos. Naquele momento, avistamos um Judas formosamente paramentado pendurado na forca. Logo que o sol baixou ardia aquele boneco em brasa, mil bombinhas e pequenos sóis projetavam-se ao seu redor. Ao final, o traidor, em meio aos gritos da multidão que se aglomerava ali, desapareceu após uma assustadora detonação".

Beleza de narrativa da Salvador de outros tempos. Com este trecho, declaro que detono os Judas da política; os corruptos e os governos sem escrúpulo, e desejo a todos os leitores uma feliz Páscoa.

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