As comidas de tabuleiro
A expressão “comida de tabuleiro” foi utilizada por Gilberto Freyre no livro de nome Açúcar para falar daquelas que se diferenciavam das que saíam dos conventos como os sequilhos, as bolachinhas de goma, os beijinhos, etc.
Freyre deu a entender que tratava-se de comidas que, ao invés de serem acariciadas pelas mãos angelicais das freiras, eram a maioria delas deitadas sobre uma pedra ou qualquer superfície lisa e cortadas.
Bons exemplos são o quebra queixo, a cocada, o pé de moleque e a queijada, que não é feita de queijo, mas de coco cortado em lascas. Verdade é que as mulheres do tabuleiro não apenas colocavam as mãos nas suas comidas, mas o seu corpo inteiro.
Elas preparam o “de comer” respeitando os mesmo cânones presentes em outras cozinhas. Baseiam-se para fazer as suas preparações em segredos e rituais específicos.
Elas se organizam de tal forma que o saber do dedo para as coisas gostosas vai sendo transmitido de mãe para filha e filho, pois hoje, além das baianas, ou aquelas que trabalham com comida baiana – entendida como uma cozinha restrita à cidade de Salvador e a poucas áreas do Recôncavo que agrega comidas de azeite e comidas sem azeite, como a frigideira, o malasado, o sarapatel, a farofoa de água, o escaldado, o pirão, dentre outras –, temos também os baianos, homens que vêm se destacando no cenário destas comidas e recebendo o nome de pratos afamados como: feijoada, maniçoba, abará e assim por diante.
Tenho dito que cozinhar é prestígio, é arte. É arte de suscitar memórias, sentimentos, prazer através da comida. A partir do momento que a comida é posta no prato, ela sai do dominio do cozinheiro e da cozinheira.
Agora é pura magia, e foi acreditando nisso que, de forma muito especial, as baianas – aquelas que adotaram desde cedo o vestuário africano, caracterizado por saias de cores vivas e largas, pela camisa de crioula, enrolada com um tipo de xale retangular chamado de pano da Costa feito de algodão cru e a cabeça coberta por um torço – introduziram com eficácia ingredientes, sabores e cores trazidos do continente africano nas cozinhas com as quais se depararam.
O ofício da baiana é o seu trabalho. São suas habilidades. É saber dar a elegante forma cônica nos abarás; é saber deitá-lo sobre a cama feita de folha de bananeira de maneira tal que eles não encham de água a fim de não ficarem duros ou “solados”; é saber tirar acarajés bonitos e conhecer as suas diferentes formas, tamanhos e significados; é saber assar a passarinha; conhecer o ponto do vatapá; saber fazer arder o corpo inteiro de quem come a pimenta; é não perder o ponto do escaldado; não deixar o pirão encaroçar; fritar o peixe e não deixar esbagaçar; é bater um bolo e crescer; é saber escolher um quiabo, uma abóbora e outros produtos que exigem certa “ciência,” enfim, “é ter mão boa.”
Graças a estas mãos temos conservado a excelência em criar e recriar pratos inspirados pelas várias cozinhas que entraram na nossa composição. E assim, homens e mulheres negras vêm seguindo com seus tabuleiros, hoje não mais circulando, mas fixos, obrigando aos clientes lhes prestar reverência, afinal, o dia da baiana são todos os dias, embora seja bom ter um dia especial para comemorarmos, pois baianas e baianos nos ensinam que a boa comida não é aquela que apenas sacia a fome, mas a que nos dá bons motivos para comer mais.