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Vilson Caetano

Por [email protected]

ACERVO DA COLUNA
Publicado quinta-feira, 14 de julho de 2016 às 8:15 h | Autor: [email protected]

Comida feita para comer...

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Vilson Caetano - Antropólogo
Vilson Caetano - Antropólogo -

A minha presença nos últimos seis anos como professor nos cursos de Nutrição e Gastronomia da Universidade Federal da Bahia tem me permitido fazer uma revisão constante sobre conceitos relacionados à comida e o comer. Dentre as várias experiências, gostaria de partilhar aqui uma que vem se repetindo na disciplina Aspectos Sócio Culturais em Alimentação e Nutrição.

No segundo encontro deste componente curricular, os alunos retornam de suas casas trazendo para a sala de aula uma relação contendo "comidas consideradas gostosas" e outra de "comidas consideradas ruins".

Tem me chamado a atenção, com o passar do tempo, que ambas as listas têm aumentado ou, em outras palavras, que mais comidas estão sendo classificadas como boas ou ruins pelos alunos. Na lista das comidas "boas para comer", destacam-se as que vêm de fora, ou possuem nomes estrangeiros, em especial, francês, respeitando uma das máximas, ao menos, da gastronomia popular, se é que podemos falar assim, "que francês é chique", ou melhor, "è puro chiquê".

Nesta primeira experiência descrita pelos alunos, nos chama a atenção também a inclusão de comidas que nunca foram sequer experimentadas, o que nos permite demonstrar que o gosto de uma comida transcende ao uso que faz dela cada indivíduo numa sociedade. O gosto está mesmo associado a um conjunto de valores e a diversos acordos que grupos sociais vêm fazendo. Se, por um lado, entre as mais gostosas, estão as comidas que "vêm de fora," a inclusão das comidas regionais também tem aumentado na lista das comidas consideradas ruins, que quando são declaradas por alguns alunos são acompanhadas por expressões de nojo, outro conceito cultural que pouco temos enfrentado.

O macarrão com salsicha tem liderado o ranking da lista das rejeições. Ainda estou procurando explicações para ele, está sendo tão renegado, e confesso que talvez não encontre por questões políticas, já que a combinação remete a determinada classe social.

A negação de algumas comidas é, ao mesmo tempo, a negação de uma determinada condição social. Ela acontece a partir de um lugar, no qual o indivíduo se coloca ou pensa que está colocado. É deste lugar social que os indivíduos falam e criam seus conceitos sobre a comensalidade.

Assim como algumas comidas gostosas, existem comidas consideradas "não gostosas" que também nunca foram experimentadas. Estas foram rejeitadas antes mesmo pelo seu cheiro e sua aparência. Certa ocasião, ouvi a explicação de que "só em pensar dá nojo." E insisti: "então vamos comer!".

Trata-se de comidas a maioria das vezes nem lembradas, pois o esquecimento é também uma forma de negar. Refiro-me ao sarapatel, à buchada, ao mininico, à cabidela e outras preparações que têm como base vísceras como o coração, o fígado, o bofe, o rim, a passarinha e carnes retiradas da cabeça do boi que antes eram cozidas e temperadas com azeite de dendê, ou banha de porco, acrescidas de quiabos e outros legumes ou folhas, servidas acompanhadas por um angu.

Não resta dúvida de que nossa concepção sobre a comida e o comer modificou-se nos últimos 30 anos e que tal mudança nos hábitos alimentares foi acompanhada pela reviravolta na forma de olhar determinados pratos a partir de falas construídas sobre eles.

Desta maneira, foi-se o tempo do "fato" comido na madrugada, não que ele tenha desaparecido, mas perdeu completamente o prestígio. Quando ele aparece, algumas partes são substituídas pelos embutidos, que hoje se afirma "que dão mais sabor."

A título de nota, a buchada é feita com as vísceras dos ovinos e caprinos. Coração, fígado, rim, pâncreas e outras partes são acomodadas cortadas em cubos dentro do bucho do animal, que é envolvido por tripas. É prato difícil de fazer porque, para além de técnica, pressupõe tempo, paciência e experiência.

Há também o mininico, um dos campeões na "cozinha sertaneja". O mais famoso é o mininico de carneiro. "É tudo que o carneiro tem dentro, cortado bem miudinho, cozido e refogado. É servido bem sequinho". Embora a expressão cabidela refira-se em algumas cozinhas à nossa "galinha ao molho pardo", outra desaparecida na lista dos meus alunos das comidas gostosas, cabidela é também preparação feita a partir de todas as vísceras da galinha, incluídas as tripas que são religiosamente "viradas", ou melhor, esvaziadas, depois aferventadas, cortadas junto às demais vísceras, cozidas e temperadas.

Cabidela se come e lambe os dedos, ouvi certa ocasião. Talvez o desaparecimento de certas comidas, ou o seu esquecimento, esteja mesmo relacionado ao tempo que a sociedade moderna tem estipulado para a preparação de sua comida. Como sugere Michael Pollan, se gasta mais tempo assistindo a programas de televisão sobre comida do que cozinhando.

Desta maneira, acredito ter dado pistas para começarmos a fazer, antes de tudo, uma verdadeira revisão do olhar sobre o que comemos e o que podemos comer, na esperança de que esta revisão, se não bons glutões, amantes da comida, nos façam menos preconceituosos. Afinal, comida é feita para comer.

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