É assim ou assado...
É antigo o entrelaçamento entre a linguagem e a alimentação, embora alguns insistam ter sido na Grécia, por volta dos anos 300 a.C., que isso tenha aparecido pela primeira vez como uma metáfora. Um passeio por diversas culturas nos permite perceber a comida como linguagem, ampliando a nossa capacidade de nos comunicarmos a partir de significados conferidos por elas.
Esta relação é algo extremamente criativo e dinâmico. Dentro deste universo, as frutas cumprem papel fundamental, destacando-se as brasileiríssimas banana e abacaxi. Dar uma banana, cerrar a mão e levantar o braço, significa fazer pouco caso de algo.
Nos últimos anos, entre nós, a fruta vem sendo utilizada como expressão de ódio racial. Chamar alguém de banana já foi uma das maiores ofensas. E como não se lembrar de: "Laranja madura na beira da estrada, ou está podre ou está bichada"?
Mesmo antes de Chacrinha ter imortalizado o abacaxi como sinônimo de desaprovação, ele já era utilizado como símbolo de algo que não presta, é confuso.
Em seguida, vem a laranja, pessoas utilizadas por outras. Não podemos esquecer da jaca. Enfiar o pé na jaca denota que a pessoa se excedeu. Saiu de sua rotina. Temos ainda: chorar pitangas; catar milho; quebrou o coco, ao invés de quebrou a cabeça; amarrar a melancia no pescoço, dentre outras.
Relações sociais
A comida exerce papel fundamental para pensarmos relações sociais. Assim, os aqui chamados insumos ou ingredientes como pimentas, manteiga, batata, chuchu, açúcar, leite, água, grãos, sal, coco, farinha, azeite de dendê, cana, ovo, gema, coentro, estão o tempo todo reforçando prestígios e papéis sociais, relaxando ou acirrando tensões.
A frase "farinha pouca, o meu pirão primeiro" surgiu no Brasil Império, no tempo da escassez de farinha de mandioca. "Pimenta nos olhos dos outros é refresco"; "vá plantar batatas" ou, ainda, a pergunta "Você é homem ou um saco de batata?", são expressões que fazem parte do nosso cotidiano.
Situações fáceis já foram referendadas como chuchu beleza, mas a frase "dar mais do que chuchu na serra" já significou promiscuidade. Pode-se ouvir "de grão em grão, a galinha enche o papo", denotando alguém que faz das tripas coração, esforço enorme para sobreviver. O mesmo vale para "assobiar e chupar cana". Entrar em cana, todavia, significa ser preso. Dizer que alguém é "da gema" é o mesmo que original. "Comendo o pão que o diabo amassou" é estar passando necessidades. A frase "mais quente do que azeite de dendê" conhecemos bem o seu significado.
A comida fortalece os elementos mantenedores de identidades. Tudo o que foi dito anteriormente serve para preparações como pipoca, doce, bolo, marmelada, grude, chiclete, pamonha, picolé, bolacha, pão, arroz, canja, angu, molhos, caldos, lingüiça, salsicha, gelo, dentre outras.
Sair de pipoca ou folião pipoca, são lugares sociais do carnaval de Salvador. Os doces cumprem papel especial na linguagem poética e romântica. Assim, as expressões e frases "doce de coco" e "quindim de yayá" expressam carinho. Ruim mesmo é ficar "de molho", aguardando, e "tomar um bolo', a pessoa não aparecer. Participar de uma seleção e haver marmelada. Deparar-se com pessoas que nunca tomam iniciativa, "pamonhas", e por fim, "levar uma bolacha", tapa no rosto. Entrar num lugar frio e "virar picolé"; deparar-se com situações embaraçosas como um "angu de caroço". Pessoas que estão em todos os lugares recebem o nome de "arroz de festa" e há aquelas que nas suas relações são um grude, ou ainda "grudam que nem chiclete".
Referências aos animais também fazem parte das metáforas do comer. Chamar alguém de "galinha" denota promiscuidade. "Galinha do primeiro ovo" diz-se de alguém inquieto. Todavia, "galinha gorda" é nome de uma brincadeira infantil.
"Cabra macho" dispensa explicações. Sentir-se um "peixe fora d' água" quer dizer não saber do assunto. "Baleia" é palavra depreciativa para dizer que a pessoa está gorda. "Bode" significa confusão. "Tomar gato por lebre", enganar-se. "Frango" diz-se nas academias de rapazes franzinos. "Peru" é delator, mas a "perua" é um estilo.
Não passa desapercebida nem as vísceras ou partes do corpo como o bofe, as tripas, o bucho, os ossos, a gordura, a língua, o coração , etc. Festa de pobre é "bucho"; de rico, "luxo". Situação difícil é como "osso duro de roer". Chamar alguém de "xebeu" (couro do toucinho) é o mesmo que dizer, sem valor. E os rapazes apelidados por "bofe"? Foram desaparecendo como a comida xinxin de bofe.
Para concluir, bom mesmo é observar que a comida como linguagem resiste ao internetês, linguagem virtual, às vezes oculta, caracterizada por abreviações e utilização de emoticons.
Comecemos a exercitar mais esta relação antes que tudo possa ser reduzido a pequenas palavras antecedidas pelo # (hashtag). Mas gostoso mesmo é o poder de inversão das relações proporcionada por esta linguagem, a exemplo da que acontece no refrão mais cantado pelo Brasil. "Sabe aquele gelo que você me deu? Eu tô tomando ele na balada com whisky e Redbull. Eu tô curtindo com a galera e dando vaia para tu".