CORONAVÍRUS
Guerreiros da saúde: Doses de fé e coragem na luta contra o coronavírus
Por Nicolas Melo
Há mais de um ano longe de amigos e familiares, a enfermeira Sanjaya Mayan, 38 anos, vivencia a intensa rotina no Hospital Espanhol, unidade especializada no tratamento de pacientes infectados pelo coronavírus. “Com essa pandemia, houve muitas mudanças. Antes de tudo isso, a gente estava acostumado a atender um nível de complexibilidade de pacientes, mas as intercorrências agora são constantes. O nosso sentido de alerta, que já era alto, passou a ser maior ainda”, comparou Sanjaya. “Uma exaustão física já que ficamos no sentido de alerta o tempo todo, com os músculos rígidos, tensos. Então, vem a dor física e o cansaço”, acrescentou.
O expressivo número de 3,55 milhões de mortos no planeta, sendo 465.199 no Brasil, mostra que o pandemônio global ainda não acabou. Sanjaya conta que as mortes constantes e a rotatividade de pacientes, somados à tensão do estado constante de alerta, a levaram a ter dificuldades para dormir e relaxar. “No começo eu tive muita insônia, o que também causava muito cansaço. Hoje, estou no processo de busca interna para me fortalecer cada vez mais para continuar firme na luta contra a covid”, contou.
Para aliviar a tensão, a enfermeira encontrou na reaproximação com a família e, principalmente, no exercício da fé a saída para enfrentar o caos provocado pela Covid-19. “Deus é tudo na minha vida. Se estou viva hoje é por causa de Deus, e Ele é quem rege tudo que faço. Ele está presente o tempo inteiro comigo e, se não fosse por Ele, eu não sei se teria forças para continuar”, desabafou.
Além da fé, Sanjaya Mayan conta com o suporte familiar que, para ela, é de suma importância em sua vida. Apesar do marco do isolamento social, a enfermeira passou a dividir mais tempo com o marido e os filhos e aproveitar cada momento ao lado dos entes queridos. “Temos conversado mais, nos unimos mais e eles têm orgulho do meu trabalho”, disse, contente.
A esperança em dias melhores e a vontade de salvar vidas também fortaleceram a profissional. “O que me move para acordar e vir para o hospital todos os dias é a vontade de salvar pessoas desse vírus, para ajudar nem que seja uma vida, uma família”, enfatizou.
Não muito diferente da enfermeira, o médico Franklin Santana, 54, viu sua rotina se modificar, principalmente quando contraiu a Covid-19, em outubro do ano passado. Após cerca de 7 meses, ele ainda sente as sequelas do vírus. “Formaram-se fibroses (nos pulmões) que não são mais passíveis de resolução, então fiquei com sequelas permanentes, mas que me permitem uma certa funcionalidade. Eu diria que se eu fosse atleta, não conseguiria mais fazer atividades profissionais, como uma maratona ou natação”, lamentou.
Diante do cenário atual, Franklin desconfiou que estivesse contraído a Covid-19 depois que começou a tossir e sentir dores nas articulações, além do corpo febril, mal-estar e cansaço. Logo, se afastou do trabalho e obteve a confirmação após exames. Com cerca de nove dias infectado, o médico já começava a sentir os danos do vírus em seu corpo.
“Ao tomar um banho fiquei muito cansado. Parecia que eu tinha corrido uma maratona, com um banho apenas”, relembrou. Estranhando os sintomas, o médico percebeu que a doença havia avançado. “Aquele vapor d’água me dava ainda mais a sensação de falta de ar. Eu buscava ar, mas parecia que não tinha ar, que não existia ar o suficiente”, acrescentou.
Com 50% dos pulmões comprometidos, Franklin Santana foi internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Português, na Graça. Cerca de uma semana depois, ele recebeu alta para um leito de enfermaria. Na época, segundo o médico, o protocolo do hospital permitia um acompanhante. A companhia, para ele, foi um divisor de águas no processo de recuperação. “Posso falar de coração sobre como foi importante aquele acompanhante, que nem era um familiar, mas um amigo. Quem é o amigo que não teve covid e estaria disposto a estar num quarto com um paciente covid durante 24h? Só quem te ama muito! Uma amizade sincera o que é raro hoje em dia. É aí que você vê o valor de uma amizade”, enalteceu Franklin, sobre a amizade com Leonidio Marcial Góes Leite, 53.
Lealdade
A presença do amigo e massoterapeuta Leonídio Marcial Góes Leite, conhecido como Léo, foi de suma importância no tratamento de Dr. Franklin, uma vez que ele o ajudava em ações básicas, como levantar da cama e, além disso, era um rosto amigo. O médico conta que ter aquela companhia no hospital era um alento, pois não se sentia só. Para ele, o ato do amigo resume a essência de valores éticos, como amar ao próximo.
“Foi uma experiência maior, eu diria. Se colocar numa posição de possibilidade de adoecer gravemente, para mim, é um ato de heroísmo, eu diria. Como um bombeiro faz ao entrar no fogo para salvar uma pessoa, de um salva-vidas que entra na água para salvar uma pessoa que está se afogando. É isso que nos torna realmente humanos”, ponderou Franklin Santana.
Léo conta que, no dia que Franklin ligou (após sair da UTI) para perguntar sobre a possibilidade dele acompanhá-lo durante o período de internação, ele não pensou duas vezes em ajudar o amigo. “Na hora, eu não pensei em ter medo. Não tive medo. Não pensei se eu poderia me contaminar. Só que, naquele momento, Franklin precisava de mim, então eu fui. Fiquei com ele no quarto e segui os meus instintos. Sempre usei a máscara e não retirava em momento algum. Para comer, beber água, eu saia do hospital. Eu segui muito os meus instintos e não fui infectado até hoje”, relembra.
Uma amizade que dura uma média de cinco anos. Segundo Leonídio, era difícil ver o amigo naquela situação, acamado, às vezes procurando o ar, mas sem encontrar. O massoterapeuta revela que a maioria do tempo em que esteve no quarto ficou calado por horas. “Quando a pessoa está doente (com Covid-19) e não está saturando bem, você não pode falar muito. Você só fala quando ela fala, e é aí que você entra. Ela te pergunta alguma coisa, você responde e depois escuta. Deixe que a pessoa fale, não você. Quem tem que falar é o outro que está emocionalmente abalado”, explicou.
A experiência vivida por Léo ao lado de Franklin deixou um importante aprendizado: “Palavras naquela hora são inúteis. Ela entra de forma errada. A pessoa está com falta de ar e não tem ideia se aquilo vai passar ou se vai piorar, e isso a deixa nervosa, questionadora. Tem que ter paciência porque ela vai ficar zangada em alguns momentos. Ela passa por incertezas. O silêncio e a sua presença valem muito mais que palavras”, ressaltou o massoterapeuta.
Estigmas da pandemia
Durante o tempo em que ficou internado, Franklin se apegou ainda mais à fé, mas, ainda assim, de acordo com o médico, a ideia de morte não fugiu à mente. “Não pensei que fosse morrer por causa do meu quadro clínico, mas refleti sobre a ideia. A fé me ajudou muito, mas muito mesmo. Não só porque eu acredito muito nisso, mas porque ela dá segurança, uma paz, por exemplo. Se você tem fé, então sabe que a vida não acaba aqui, que existe uma vida após a morte e isso traz uma certa tranquilidade”, comentou Franklin.
Para Sanjaya, a pandemia lhe trouxe um ensinamento. “Dar valor ao que tem valor. O que é que tem valor na minha vida? Minha família, minha saúde, as pessoas que me amam. É o amor, é Deus, é a família, é saúde, é estar perto de pessoas que realmente merecem estar perto de mim. Agora, briga, fofoca, pessoas que causam intriga, nada disso tem valor!”, ponderou a enfermeira.
Tanto Franklin quanto Sanjaya conseguiram extrair alguma lição da pandemia, mas ambos relataram situações que podem ser consideradas como “estigmas da Covid-19”. Sanjaya, que trabalha em um hospital de campanha, sofreu preconceito no prédio onde reside com a família. “Lá, a gente coloca o lixo na porta e as pessoas responsáveis recolhiam, mas não fizeram por um tempo. Não queriam retirar o meu lixo por causa do medo de pegar covid só porque eu trabalho em um hospital de campanha”, lamentou a enfermeira.
Franklin, por outro lado, contou que sempre pagou o condomínio em dinheiro, mas, ao ficar doente, ele recebeu uma informação de que o pagamento deveria ser feito por depósito. “Eu já tinha feito o esforço de ir ao banco sacar para depois não receberem. Acabou que eu paguei em dinheiro mesmo. Infelizmente, os profissionais de saúde e quem contrai a covid sofre esses preconceitos, esses estigmas”, comentou o médico.
Confira a entrevista
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