CULTURA
A Bahia está na dianteira da gastronomia brasileira
Por Liana Rocha, do A Tarde
Muito antes que a gastronomia se tornasse uma febre no País, ele já curtia mexer nas panelas, conhecer os melhores restaurantes e apreciar bons vinhos. O Josimar Melo gourmet, entretanto, era pouco conhecido do grande público, que o relacionava ao movimento estudantil de 68 (fez parte do famoso grupo de esquerda Libelu) e à política (foi membro da direção nacional do PT e se candidatou a deputado na primeira eleição em que o partido participou).
Mas bastou uma breve aparição num artigo do jornal A Folha de São Paulo, para provocar uma grande curiosidade do público. E foi de artigo em artigo, em diversas publicações especializadas, que Josimar construiu sua carreira de crítico gastronômico, observando bem de pertinho como o Brasil começava a formar sua própria alta gastronomia.
Hoje um dos mais conceituados especialistas no Brasil e autor de famoso guia gastronômico, Josimar atua como articulista da mesma Folha, colabora em revistas e também é sócio diretor do portal gastronômico Basílico. Sua mais nova empreitada é uma série de 13 programas que misturará gastronomia com turismo, e deve ir ao ar na Fox ou no Natgeo.
O crítico, que esteve em Salvador em outubro, durante o evento gastronômico Bahia Gourmet, conversou com a repórter Liana Rocha sobre a trajetória dos profissionais e da culinária brasileira, a presença da Bahia neste cenário, os modismos, os destaques e as suas apostas para o futuro da gastronomia.
A TARDE – Como foi sua trajetória até tornar-se um dos mais conhecidos críticos gastronômicos do país?
JOSIMAR MELO - Sempre gostei de gastronomia, de culinária, de vinhos, de cozinha, desde muito jovem, desde estudante. Mas durante boa parte de minha vida eu me dediquei a outras atividades, fazia política na época da ditadura militar. Eu era um líder de esquerda, importante da Pauta, do grupo da Quadra Internacional, que tinha um apelido, a imprensa chamava de Libelu. Eu fui da direção nacional do PT, candidato a deputado em 1982. A primeira eleição que o PT participou, que elegeu pouca gente, mas tive 20 mil votos. Mas durante todo esse tempo eu continuava gostando da gastronomia, mas minha atividade profissional era totalmente focada na militância partidária.
AT – Até quando?
JM - Até 85. A partir desse momento eu decidi me dedicar mais ao jornalismo, e comecei a trabalhar na área. Mas não com gastronomia, num primeiro momento. Só que, quase uma casualidade, uma amiga minha que trabalhava na Folha de São Paulo na época, dirigia um caderno, a Lílian Pacce, que sabia que eu adorava cozinhar, me pediu para escrever um artigo sobre gastronomia. Escrevi, e teve uma grande repercussão, até pelo fato de eu ser muito conhecido em SP, como militante de esquerda. Porque fez que muita gente visse no artigo um outro lado meu que eu não suspeitava. Todo mundo que vivia na militância comigo sabia que eu tinha esse hobby. Agora, o grande público, os 20 mil que votaram em mim, as pessoas que me elegeram presidente do DCE da USP, os que votaram em mim para presidente na primeira campanha da UNE, não sabiam.
AT – Só conheciam sua faceta política.
JM – E aquilo chamou muita atenção.
AT – E a partir daí?
JM – Aí surgiu uma porção de convites, de revistas, de jornais, para eu escrever sobre isso. E como era meu hobby, uma coisa que eu já adorava, e eu também gostava de escrever, eu comecei a escrever cada vez mais sobre isso e depois de um ano fui chamado para uma revista chamada Gourmet – que não existe mais – e aí comecei a trabalhar só com gastronomia. E depois de mais um ano a Folha me chamou para trabalhar lá. E não parei mais.
AT – E o que é mais doce, a vida de gastrônomo ou de político?
JM – Depende da sua vocação e do momento da sua vida. Tem gente que odeia cozinhar e adora fazer discursos, por exemplo (risos). Eu, numa época da minha vida, adorava fazer aquilo que eu fazia. Eu fugi da polícia, me esconder da ditadura, ser fichado. Minhas fichas tão lá no Dops, minhas fotos com cara de presidiário. Mas era o que eu gostava de fazer na época. Hoje eu gosto de fazer outra coisa.
AT – Você já tem um bom tempo fazendo essa outra coisa. Nestes mais de 20 anos, o que pôde perceber de mudança na gastronomia feita no Brasil?
JM – Acho que teve um amadurecimento muito grande, tanto do ponto de vista da qualidade de produtos que hoje estão disponíveis, como do ponto de vista da qualidade dos profissionais envolvidos. Há 20 anos não existia formação profissional, a rigor. Era muito pouco, tudo feito mais na base da intuição ou de um aprendizado parcelado. O cara podia ser pedreiro, aí acabava a obra, ele ia lavar prato num restaurante, de repente alguém via que ele tinha habilidade pra cortar cebola, ele ia, aí daqui a pouco ele virava cozinheiro. Um cozinheiro especializado naquela cozinha, daquele restaurante. Ele aprendia a fazer aquelas receitas e ponto final.
AT – Algo no estilo do personagem principal do filme Estômago
JM - Porque o cara não tinha cultura de gastronomia, não tinha aprendizado técnico. Se ele sabia técnica de picar cebola, ele não necessariamente sabia técnica de abrir massa de pizza. A formação era totalmente intuitiva e feita ali no local de trabalho, uma coisa muito precária. Muitos desses chefes eram tão talentosos que viraram grandes chefes. Hoje em dia, desse ponto de vista profissional há um desenvolvimento muito maior. Hoje não se conta apenas com pessoas que foram escolhidas pela profissão, por falta de opção. Hoje existem pessoas que escolhem a profissão, jovens que optam por fazer gastronomia. O cara quer ser chef de cozinha, que ter uma confeitaria, quer ter um buffet de eventos. Isso muda muito, porque o cara vai estudar, ele vai aprender o universo inteiro da gastronomia antes de se especializar.
AT – Com essa busca pela profissionalização, o País já tem chefs que se destacam fazendo uma cozinha brasileira contemporânea?
JM - Hoje nós temos. Outra diferença em relação há 20 anos. Antes os grandes chefs que existiam no Brasil eram quase todos estrangeiros. Havia cozinheiros brasileiros, ali na cozinha, recebendo as ordens. E a maioria dos grandes chefs eram todos franceses ou italianos, eles vinham de fora. Ou então o restaurante onde os cozinheiros eram anônimos e técnicos com o proprietário, que era estrangeiro, ou alguém mais culto. E era ele que falava vamos fazer tal receita, trazia os livros da Europa e mandava o cara fazer. Hoje, não, ao lado destes profissionais que ainda existem você tem já uma geração de chefs brasileiros importantes.
AT – Quem?
JM - O Alex Atala, do D.O.M, é o mais famoso de todos, mas ele é só um exemplo de um certo cara que nasceu no Brasil, que tem cultura, que viajou. Então ele tem um universo na cabeça aberto o suficiente para conseguir criar coisas e não apenas executar.
AT – E o que chama atenção em Atala?
JM – O que chama atenção nele é o fato de ser contemporâneo, um cara do mundo, que tem cultura e tem conhecimento, não só da gastronomia, mas da cultura humana, da qual a gastronomia faz parte. E estar usando isso para valorizar o universo da gastronomia brasileira. Isso é que é o grande destaque dele. Ele poderia estar fazendo cozinha francesa, cozinha italiana, estar fazendo qualquer coisa. Ele na verdade faz uma cozinha que é contemporânea, mas de base brasileira. E ele tem liderado um esforço muito grande de pesquisar ingredientes que estão sendo esquecidos, ou que são desconhecidos, e trazer isso à baila na mesa brasileira. E obviamente ele faz isso com um super-talento. Se ele não fosse talentoso como cozinheiro, seria só um pesquisador. O que já seria ótimo, mas o bom é que ele alia esse trabalho intelectual e de pesquisa com uma técnica culinária maravilhosa, capacidade de fazer boa comida, boa cozinha e agradar o paladar.
AT – Além do Atala, tem mais alguém que esteja modificando nossa gastronomia?
JM – Ele é o líder desse negócio. Tem vários jovens chefs que trabalham em restaurantes ou nos seus restaurantes e estão fazendo coisas bacanas. Aqui em São Paulo tem umas moças, a Bel Coelho, por exemplo, que é uma jovem chef, do Buddha Bar. Tem a Helena Rizzo, do Maní, junto com o marido, espanhol. Mas antes mesmo de casar com ele era já era uma chef ousada, interessante. Elas duas usam muito produto brasileiro também. Falando de mulheres, tem também a Mara Salles, do Tordesilhas, que já está a muitos anos fazendo um trabalho maravilhoso de resgate do que é brasileiro.
AT – Esse então é o caminho? Utilizar técnicas já firmadas, mas valorizando ingredientes locais? Ou também as novas técnicas?
JM – Acho que a técnica é um coisa fundamental para a cozinha profissional, não necessariamente para a cozinha caseira ou a regional, que você pode executar com as técnicas próprias. Hoje, se tem as tradicionais e muitas modernas, principalmente essa cozinha de chefs espanhóis.
AT – E estas novidades hispânicas?
JM – São muito bacanas, que eles utilizam na verdade para extrair qualidade dos alimentos. Os que fazem isso bem, que é meio complicado, usam a técnica não para mascarar os alimentos, para fazer pílula de comida. Eles usam para valorizar as características dos alimentos, extrair o máximo delas. Inclusive, apresentando sob formas diferentes, que frequentemente ajudam você inclusive a perceber muito mais os sabores que já são naturais dos alimentos.
AT – Eles subvertem para revelar a essência?
JM – É, e às vezes outras características que estão lá e você não percebe. Os aparelhos, os produtos que estão sendo desenvolvidos, são muito importantes para isso. Agora, aliar estas técnicas, tanto as clássicas, como as ultra-modernas, com os ingredientes brasileiros, é uma forma de manter uma identidade cultural da produção gastronômica do país. E isso é muito bom, porque comida é cultura. Se alguém fizer uma comida francesa perfeita, você vai comer muito bem a cultura francesa. O que é ótimo, mas não se pode viver somente da cultura dos outros. Então é importante usar estas técnicas para traduzir a cultura brasileira naquilo que ela tem de paladar.
AT – Este foi justamente o tema do debate do qual você participou no Bahia Gourmet, enfocado na culinária baiana.
JM – Foi interessante, mostrou que existe uma reflexão da tradição versus o moderno. Serviu para mostrar que não existe uma contradição entre as duas coisas, mas uma composição. As duas devem andar de mãos dadas, porque um alimenta o outro. Quem não conhece a cozinha tradicional, não consegue fazer uma cozinha moderna autêntica e consistente. Quem quer fazer uma cozinha contemporânea, moderna, inventiva, se não sabe nada, só vai misturar coisas diferentes para chamar atenção, isto só dura um verão. Tem que dominar a tradição para ter consistência. Quando você come uma comida que parece revolucionária, inventiva, se aquilo tem raízes na tradição, você, quase sem perceber, se identifica, você gosta, por mais que ela seja surpreendente, diferente. Mas aquilo cala fundo na pessoa. A tradição alimenta a modernidade. E vice-versa.
AT – Como?
JM - Os caras mais interessantes, mais de vanguarda no Brasil são os que pesquisam ingredientes que estão desaparecendo. Eles estão tentando salvar e resgatar o que faz parte da nossa cultura e da nossa tradição. O que termina ajudando a manter também os restaurantes tradicionais. Por exemplo, uma das participantes do evento, me contou que faz comida de santo no restaurante dela e não usa mais taioba, usa espinafre, por que não encontra mais. Como taioba dá em qualquer jardim, ninguém liga. Mas se quiser preservar, tem que ter produtores que plantem, fazer contrato com essas pessoas, os restaurantes têm que garantir que vão comprar essa produção. Os chefs de vanguarda estão fazendo isso, estão indo atrás por exemplo, do filhote, um peixe amazônico que ninguém conhecia. Mas os restaurantes regionais mais tradicionais não costumam ter essa articulação.
AT – Não é tão fácil.
JM - Essas coisas são complicadas, envolvem política, ecologia, poderes públicos, dinheiro.
AT - Aqui temos o Beto Pimentel, do paraíso Tropical, que é um dos chefs que mais pesquisam e inovam na cozinha baiana.
JM – Eu acho fascinante. Seis mil pés de frutas no quintal, 123 espécies diferentes. Ele é um exemplo bacana, porque ele ao mesmo tempo faz um resgate dos ingredientes, vai plantando para que não desapareçam, e ao mesmo tempo usa isso não só para fazer uma cozinha tradicional. Ele utiliza estes ingredientes de forma inventiva. Esse é o tipo de caminho que acho que é o mais interessante que está acontecendo na cozinha brasileira hoje. Foi bom você lembrar dele, porque ele sintetiza isso: cria coisas novas, mas partindo da tradição.
AT – Como está a cozinha baiana neste processo?
JM – Toda cozinha brasileira está passando por resgatar tradições, acho que a Bahia é o lugar onde isso deve se desenvolver de uma forma extraordinária, porque já parte de uma base. Em São Paulo se tem que pesquisar para saber o que se comia antigamente. Na Bahia, todo mundo já sabe. Vamos daqui pra frente. Reelaborar essa cozinha com uma base que já está aqui. A Bahia tá boa na fita (risos). Está na pole-position desse próximo momento da gastronomia brasileira.
AT – E o que você acha que pode atrair alguém a um restaurante. É só a comida?
JM – Antes de mais nada, a comida. Para pessoa ir ao restaurante, muita coisa pode atrair. Pode ser a vista maravilhosa, porque é cheio de celebridades, ou porque é animado, ou tem parquinho para as crianças. Num primeiro momento, pode ser por um monte de atrativos além da comida. Mas se a vista é fantástica e a comida é horrível, ela nunca mais volta. O que torna a pessoa um cliente é a comida valer a pena.
AT – E o que faz um bom chef?
JM – O chef de cozinha é um artista. E assim, tem que ter as duas coisas que qualquer artista tem: talento e técnica. Tem que ter técnica para conseguir expressar o que inventa e talento, a sensibilidade.
AT – E para ser um bom crítico gastronômico?
JM - Precisa ter um certo dom, gostar daquilo. E ser um bom jornalista, se comunicar bem. Se você for num lugar e achar gostoso, mas não conseguir expressar isso para o público, você não é um bom crítico gastronômico. Como qualquer crítico, é preciso também ter cultura. Informação enriquece o leitor. Se você é capaz de falar que estes pratos são da Toscana ou de Xangai. Que os ingredientes são adequados por causa disso ou daquilo. Ir além da técnica. Você pode dar uma pincelada, colocar coisas que vão agregando formação cultural para quem está lendo.
AT – E o que atrai cada vez mais os brasileiros para a gastronomia?
JM – É um fenômeno mundial. E é maior que a gastronomia, é um fenômeno pela busca da qualidade de vida, que tem crescido muito. O planeta está tão detonado e a humanidade está se auto-detonando a tal ponto que começou a se criar quase um instinto de sobrevivência. E isso vai desde o movimento de direitos do consumidor, passando por causas ecológicas, até a gastronomia. Que é o desejo das pessoas de aproveitar melhor o que elas estão comendo e bebendo. Somos obrigados a comer e beber. Podemos comer só proteína e fibra ou a gente pode chamar isso de carne. E essa carne pode ser uma porcaria de proteína e fibra ou pode ser uma obra de arte. Hoje as pessoas querem comer uma comida saudável, bem produzida.
AT – Se você tivesse que recomendar um único restaurante no Brasil, qual seria? E qual prato?
JM – Se tiver que escolher um, o melhor seria ir no DOM. Que usa ingredientes brasileiros raros, onde você pode ter conexão com o sabor brasileiro e ao mesmo tempo de forma bastante sofisticada, que o coloca no patamar dos melhores em qualquer lugar do mundo. Quanto ao prato, acho melhor pedir o menu degustação, é o que eu sempre recomendo.
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