CÊNICAS
A relação entre pessoas pretas e o dinheiro é discutida em peça no Sesi
Atores atiçam a curiosidade do público
Por Maria Raquel Brito*
Quem não quer aprender a ser uma pessoa próspera? E, se surgisse a oportunidade de ganhar dinheiro de um jeito fácil, quantos recusariam? Essas são algumas das questões que norteiam o espetáculo “FELEBÉ FELEBÉ! Meu amigo é meu dinheiro”, que estreia hoje no Centro Cultural SESI Casa Branca, às 19h. A peça segue em cartaz até o dia 27 deste mês, sempre de quinta a domingo.
Estrelada pelos atores Ella Nascimento e Vagner Jesus e com texto de Mônica Santana e Matheuzza – que também assina a encenação e o dramaturgismo –, a peça coloca bom humor na discussão sobre dinheiro e independência financeira. A dupla interpreta os irmãos Latoya e Maicon Jackson, que, apesar de terem sido criados dentro da mesma estrutura familiar, têm visões muito diferentes sobre realização pessoal. Enquanto ele é seduzido pela promessa de ascensão individual, sua irmã acredita na prosperidade com base no coletivo.
Por meio de vídeos enigmáticos de cerca de um minuto, publicados nas redes sociais, gravados no centro de Salvador, os atores atiçam a curiosidade do público. “Você se considera uma pessoa próspera?” e “Quer ganhar dinheiro trabalhando menos de uma hora por dia?” são perguntas tentadoras. Quem espera as respostas dadas de bandeja, não as encontrará durante o espetáculo.
Os dois entram em cena com um objetivo: falar sobre dinheiro e pessoas pretas no Brasil, trazendo o máximo de recortes possíveis e perguntando qual o jeito certo de negros ficarem ricos neste país. Mas as diferenças entre os dois personagens não significam que um lado tenha mais razão que o outro na peça. “Nas especificidades da construção dessas duas personagens, uma coisa que a gente não queria era responder perguntas, trazer soluções, traçar perfis definidos, estáticos. O que a gente fez com Maicon e Latoya foi coadunar o máximo de problematizações, complexidades, diversidades e perspectivas, para que as pessoas, ao se depararem com os dois, se questionassem sobre sua própria ambição, seus caminhos para prosperar e sobre a realidade de onde estão localizadas. E, a partir daí, tomassem suas decisões”, explica Ella.
De acordo com uma pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva, pessoas negras movimentam R$1,7 trilhão em renda por ano. Ainda assim, o rendimento mensal de trabalhadores brancos é quase 65% maior que o de pretos e pardos no Brasil, mesmo que essa população seja equivalente a 56% dos brasileiros.
A realidade escancarada pelos números já era percebida diariamente por Ella e Vagner em casa e na comunidade ao redor deles. Foi então que o espetáculo, que no texto inicial teria como foco as histórias dos dois irmãos, ganhou um foco quase inevitável.
“Como entendemos o palco também como um campo de batalha, de onde tiramos risos, lágrimas e também o nosso dinheiro, meio de troca necessário e útil no nosso contexto social atual, escolhemos um caminho de metalinguagem, em que a peça fala da peça que estamos encenando. E nesse espaço fractal, proposto pelo dramaturgismo e encenação de Matheuzza, refletimos a nossa autoimagem e nos perguntamos: qual o jeito certo de pessoas negras ficarem ricas no Brasil?”, diz Vagner.
Desse ponto, o questionamento principal do espetáculo, que delineou a produção do texto até a luz, foi acerca de ambição de pessoas pretas. “A gente bate um grande papo sobre isso, nos questionando como estamos nesse lugar de ambicionar e levando para pessoas próximas também. E foi ficando cada
vez mais profundo e complexo. Pensar como está a ambição dos nossos, dentro das nossas famílias, e para onde está direcionado o poder de consumo dessas pessoas”, afirma Ella.
Parceria carimbada
“FELEBÉ FELEBÉ!”, nome que vem do iorubá para ‘dinheiro’, marca o reencontro de Vagner e Ella, ambos egressos do Bando de Teatro Olodum. Dupla de sintonia conhecida, eles engataram projetos juntos entre 2020 e 2022, quando trabalharam lado a lado no curta performático “Nem Me Covid”, no
curta-metragem “O Artista Suburbano”, no projeto de contação de histórias “O Conto de Nhgalula e Badu” e em uma série em São Paulo.
“E ali nasceu a ideia de criarmos um novo projeto juntos, dessa vez falando sobre dinheiro: o impacto que ele tem nas nossas vidas, qual a direção que a nossa bússola da ambição aponta e o porquê que ambicionar pode ser algo importante para nós, pessoas pretas brasileiras, que crescemos ouvindo que ambição é algo ruim e que a bondade está em ser sempre humilde, sem grandes ambições”, relembra Vagner.
De 2022 para cá, o espetáculo foi tomando forma. Os atores lapidavam a ideia e buscavam meios de viabilizar a realização. Nesse meio tempo, mais pessoas se aproximaram do projeto e mostraram aos dois a urgência do assunto para a comunidade. Mais tarde, o projeto foi contemplado nos Editais da Paulo Gustavo Bahia, com apoio financeiro do Governo do Estado da Bahia, através da Secretaria de Cultura via Lei Paulo Gustavo.
Educação financeira
Falar sobre dinheiro e independência financeira enquanto pessoas pretas é, para o intérprete de Maicon, reivindicar reparação, provocar ruptura da inércia e denunciar o roubo de riquezas materiais e imateriais do povo negro. “Isso vem muito antes do momento atual. Estamos falando de gerações de prejuízo do jogo de azar chamado sistema escravocrata, onde os meus antepassados foram a moeda de troca que serviu de alicerce para o país que vivemos hoje”, diz.
Pensando nisso, o espetáculo propõe também, como parte de um projeto maior, uma oficina gratuita de Educação Financeira. O workshop, ministrado pela educadora financeira Cinara Santos, tem como objetivo refletir como as questões raciais moldam a relação das pessoas com o dinheiro e ensinar o público a gerir as próprias finanças.
“A gente pode dizer que a relação com o dinheiro está profundamente ligada ao racismo estrutural. Porque se formos falar de desigualdade de renda, as pessoas pretas estão em contas mais pobres, estão com os piores empregos, estão com os empregos menos remunerados, são os que estão mais na
informalidade. Quando você vai falar de um empreendedor preto, ele tem menos acesso ao crédito, menos acesso a serviços financeiros. Até a própria educação financeira para quem é uma pessoa preta é desigual, porque existe menos acesso”, explica Cinara, que é pós-graduada em Educação Financeira com Neurociência e mentora de Gestão Financeira para MEIs no Vale do Dendê.
A oficina acontecerá no dia 14 de outubro, na sede do Grupo Cultural E ao Quadrado, localizada no Alto do Cabrito. Para a especialista, esse momento é um complemento da peça, e dar à população mais pobre acesso à educação financeira também é uma forma de empoderar.
“Também é fazer com que essas pessoas tenham uma perspectiva de futuro muito melhor, administrem muito melhor o seu dinheiro, pensem de que forma podem investir esse dinheiro”, celebra.
FELEBÉ FELEBÉ! Meu amigo é meu dinheiro / A partir de hoje até 27 de outubro, de quinta-feira a domingo, 19h / Centro Cultural SESI Casa Branca / R$ 30 e R$ 15
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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