MÚSICA
Álbum póstumo do mestre baterista baiano Dom Lula Nascimento é lançado em streaming
‘O Método’ é lançado com participações de Hermeto Paschoal, João Donato e outros
Por Maria Raquel Brito*
Era uma tarde de 2015 quando Dom Lula Nascimento, um dos maiores bateristas do jazz brasileiro, entrou no Estúdio Casa das Máquinas, no bairro do Rio Vermelho, pronto para gravar seu primeiro álbum solo. Registrou as onze faixas de uma só vez, com um objetivo principal em mente: propor um exercício musical em forma de disco, ensinando seu método a outros bateristas.
Compartilhou com Zezão Castro, jornalista e produtor do álbum, alguns nomes que queria que participassem das faixas, como João Donato (piano), Hermeto Paschoal (escaleta), Ricardo Pontes (flautas e sax) e o guitarrista e baixista Luciano Souza, o Luguita, que ficou responsável pelos arranjos de base. O pedido foi uma ordem: assim nascia o disco O Método. Após todos os ajustes e aperfeiçoamentos necessários, o disco foi lançado nas principais plataformas de streaming no último sábado (30) em caráter póstumo, sete anos após o falecimento de Dom Lula.
“É uma satisfação incrível lançar esse álbum, porque a bateria de Dom Lula é um legado brasileiro e mundial. É dar ao mundo acesso a um gênio do instrumento”, defende Zezão, que convidou também outros grandes músicos para completar a gravação: Joatan Nascimento (trompete), Fred Dantas (trombone de vara), Luizinho Assis (piano elétrico), e Kiko Souza (flauta e sax).
De Nos Tempos do Gessildo Caribé Trio a Piparote, as 11 faixas levam “Exercício” no nome, como um lembrete de que, além de canções, são uma prática. Cada uma delas foi feita em compasso único: 2/4; 3/4; 4/4; 5/8; 6/8; 7/8; 8/8; 9/8; 10/8; 11/8 e 12/8, seguindo uma didática jazzística.
O disco não foi planejado como uma obra póstuma, mas acabou se tornando um objeto valioso no legado de Dom Lula, sobretudo para os artistas do futuro. Ser atemporal já era uma de suas características: “Os caras falam que eu toco entre o que está acontecendo e o que vai acontecer”, declarou o artista certa vez, para o minidocumentário Baquetas de Ouro (disponível no YouTube).
Segundo Zezão, a principal função do álbum é justamente servir como um farol para aqueles que desejam se aperfeiçoar. Um baita presente direto do olimpo do jazz. “Ao mesmo tempo, [serve para] entender a genialidade de um músico que não conseguiu gravar nenhum álbum solo durante sua carreira, por vários fatores. O legado agora persiste e ao mesmo tempo a música instrumental brasileira também vai ganhar projeção mundial, por meio das plataformas”, diz.
O disco foi totalmente custeado pelo produtor, após algumas tentativas frustradas de inscrever o projeto em editais. O tempo foi passando, e a necessidade de levar os ensinamentos de Dom Lula ao mundo falou mais alto. “Perdi alguns editais e falei: ‘vou fazer sozinho’. Cansei. (...) Terminou, botamos os últimos pingos nos i’s e lançamos”, conta Zezão.
‘O Método’
“Eu tenho meu método, modéstia à parte, que é de técnica avançada. É para quem toca”, definiu Dom Lula, há cerca de 15 anos. O “manual” foi criado pouco tempo antes, em 2008. Anos depois, Zezão percebeu que Lula tinha essa didática própria para dar aulas a bateristas. Certo dia, estava num estúdio e sugeriu: ‘por que você não grava esses tópicos da sua aula para nós fazermos um CD?’.
“Ele olhou para mim e falou: ‘como é que você sabe, José, que eu queria fazer isso?’. Era o bordão dele. E aí, ele começou a gravar os exercícios, em tempos diferentes, nos compassos. Gravou cada exercício em um tempo”, conta o produtor.
Depois disso, adicionaram o baixo e a guitarra. Havia aí um esqueleto do álbum, e Zezão começou a oferecer o álbum a outros músicos, conforme os desejos de Dom Lula. João Donato, falecido em julho do ano passado, foi um dos primeiros nomes a surgir, porque Lula tocou em seu disco Quem é Quem (1973). O Método é, de certa forma, também um tributo a Donato, que está presente em cinco faixas do álbum.
A gravação do álbum foi um processo intuitivo e com muita troca de energia, conforme conta Luizinho Assis. Ao rememorar momentos com o amigo, ele destaca a primeira vez que viu Dom Lula em ação. “Foi no festival que tinha na praia de Piatã, nos Coqueiros. Ele fez um som com Luciano Souza, só guitarra e bateria, e eu nunca tinha ouvido um som nesse estilo, então me impressionou muito”, lembra.
Foi uma caminhada longa até o lançamento, para garantir a perfeição digna de um Dom. Agora, o plano é conseguir um patrocinador para fazer versões em vinil e CD. “O primeiro passo era esse, soltar para o mundo o que estava guardado a sete chaves. Agora, vamos ver como realizar os próximos passos”, antecipa Zezão.
Baquetas de Ouro
Dom Lula, batizado Luiz Nascimento da Conceição, foi um músico ímpar. Nascido e criado no Nordeste de Amaralina, se apaixonou por jazz ao ouvir os ensaios da banda de seu pai, o trompetista Teófilo Luiz da Conceição, que aconteciam na casa deles. Ficou encantado com a bateria, e depois disso não teve mais volta: não demorou muito até se lançar na música profissional, aos 15 anos de idade, e aprimorou as técnicas nos Seminários de Música da Universidade Federal da Bahia (Ufba), onde aprendeu a ler partituras.
Dono de apelidos como “Baquetas de Ouro” e “Pérola Negra”, foi um dos fundadores da JAM no MAM, levou o candomblé para o jazz e saiu mundo afora com sua música. Ao longo da vida, tocou em São Paulo, no Rio de Janeiro, nos Estados Unidos e na França. Em seu período na capital fluminense, entre 1972 e 1975, foi baterista residente da EMI Odeon, gravando com artistas como Luiz Melodia, Taiguara, João Donato, Victor Assis Brasil e Stellinha Egg. Como acompanhante, tocou também com Wilson Simonal, Nara Leão, Carlos Lyra, Elizeth Cardoso, Elza Soares e Quarteto em Cy.
Em Nova York, onde morou entre 1976 e 1979, tocou em dois grupos: o primeiro, Love, Carnival and Dreams, era composto por Guilherme Vergueiro (piano), Walter Booker (contrabaixo), Pete Woolley (contrabaixo), Courtney Winter (saxofones e flautas), Burt McIntyre (trompete), Earl McIntyre (trombone), Charles Stevens (trombone) e Tutty Moreno (percussão). No segundo grupo, Equinox Band, do qual contava ser líder, tocou ao lado de John Scofield (guitarra), Pete Chavez (sax tenor), Big John Patton (órgão e piano) e Clarice Taylor (vocal).
Na França, em 1979, tocou ao lado de ninguém menos que Nina Simone, após surpreender os produtores da artista ao ler e decorar quase que instantaneamente uma partitura. Foi o primeiro e único brasileiro a tocar com a diva do jazz. Por cerca de um ano, a formação era Dom Lula, um percussionista e a própria Nina Simone num piano elétrico.
“Dom Lula tinha um estilo único de tocar bateria, desde a armação do prato aos toques que ele executava. Ser baterista é relativamente fácil, mas tocar bateria, e alguém escutar e dizer: ‘ali é Dom Lula’, isso é uma marca, é um estilismo do artista. É isso que está sendo legado para a humanidade”, defende Zezão. “Quem sabe um dia não colocam essas músicas num disco voador e mandam para outras galáxias, para mostrar o que o pessoal do Planeta Terra está fazendo? Quem sabe os E.Ts não se aproximam para escutar mais?”, brinca.
O Método, acima de tudo, mantém viva a memória de Dom Lula Nascimento. Para os amigos, admiradores e, claro, para a família.
“Fiquei emocionada quando Zezão me enviou as faixas do álbum. Na realidade, fiquei agradecida por ele ter se empenhado em registrar, montar esse material, ainda que póstumo, de meu pai”, compartilha Leila Rêgo, filha do baterista. “Entendo que tenha sido uma homenagem justa, me passou a impressão que foi resultado de uma admiração, valorização do talento de Lula Nascimento”.
Por mais de seis décadas dos seus 76 anos, Dom Lula se dedicou à música. Não tinha dúvidas de que nasceu para isso. Agora, provando sua atemporalidade, deixa para os sortudos desta e das próximas gerações a chance de aprender com ele a apenas alguns cliques de distância.
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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