DIA DOS NAMORADOS
Amor afrocentrado é instrumento de luta contra o racismo
Casal e pesquisadores refletem sobre relacionamento entre pessoas negras
Por Flávia Barreto*
Nos últimos anos, um novo movimento afetivo tem ganhado cada vez mais espaço no Brasil: o relacionamento afrocentrado. O conceito, que vai além do simples ato de se relacionar, envolve perspectivas de troca e companheirismo, onde pessoas negras optam por se relacionar com outras pessoas da mesma etnia, fortalecendo seus laços ancestrais.
Mas o que exatamente significa um relacionamento afrocentrado, e por que ele está se tornando tão importante?
A digital influencer Naiara Figueiredo, 35 anos, e o engenheiro Carlos Vieira, de 37, possuem um relacionamento afrocentrado. Juntos há 1 ano e 4 meses, os baianos já pensam até em casamento.
Se relacionar com pessoas negras foi um pré-requisito para Naiara e Carlos. “Um relacionamento afrocentrado é resistência e sobrevivência da nossa comunidade, enquanto negritude. É segurança e bem-estar. É desafiar a visão racista da sociedade e estereotipada sobre nossos corpos. É demonstrar que podemos amar de inúmeras formas, para além da sexualização e hipersexualização que somos remetidos quando pensamos em relacionamentos com pessoas ou entre pessoas pretas. É acolher, pertencimento e qualidade de vida, seja ela emocional, psicológica ou física”, afirmou Naiara.
Segundo Carlos, em relacionamentos com mulheres brancas, ele passou por situações de discriminação racial onde as ex-companheiras reproduziam falas e comportamentos racistas cotidianos por não sentir na pele as dores de uma pessoa negra.
“Certa vez, minha ex-namorada branca discriminou um garçom negro na minha presença. Aquilo me atingiu de uma forma absurda, pois ele parecia comigo, provavelmente tinha a minha idade, poderia ser eu. A situação foi o estopim para o fim daquele relacionamento que estava iniciando e a uma mudança de mentalidade minha na busca por me relacionar com pessoas parecidas comigo”, contou.
“Desde que iniciei o meu letramento racial entre 2009 e 2010, comecei a valorizar e entender mais a minha negritude. Decidi transitar em espaços majoritariamente pretos e dialogar com pessoas parecidas comigo, com vivências sociais semelhantes e perceber como a nossa beleza é diversa em inúmeros aspectos, e as relações amorosas com mulheres pretas aconteciam naturalmente”, completou Vieira.
A solidão é preta
E para quem não está acompanhado, nos dias atuais, a solidão ainda é uma realidade cruel, principalmente para homens e mulheres negros devido ao racismo estrutural. É o que defendem pesquisadores e psicólogos da área de letramento racial.
A Mestra e Doutora em Estudos de Gênero, Mulheres e Feminismos, Carla Akotirene, 44, e o jornalista Matheus Lens, 28, abordam o tema, relatando suas vivências pessoais e analisando como são percebidos pela comunidade.
De acordo com Carla, por inúmeros fatores sociais, as mulheres negras experenciam uma solidão maior do que os homens negros.
"Eu vejo a solidão como um posicionamento político a partir de releituras de Bell Hooks, Ana Cláudia Pacheco, Claudete Alves, Beatriz Nascimento…Então, eu penso, obviamente, que as mulheres negras vivem uma solidão maior que a do homem negro, mas estruturalmente, pessoas negras são colocadas em condições de perderem as pessoas que amam, quer sejam por conta dos formatos de relacionamentos monogâmicos, e a gente tem um contingente maior de mulheres, uma solteirice, quer seja por conta do próprio racismo, tirarem de nós esse atributo no mercado afetivo, as relações do capitalismo também chegam para o campo amoroso e nem todo mundo é colocado numa prateleira do desejo do outro da outra”.
Por outro lado, ela avalia que o movimento negro desta geração tem conseguido colocar em pauta o amor afrocentrado.
“Eu penso que ver outros casais negros se amando, publicizando seus afetos, também engrandece o dia da gente. Então, a solidão já não tem um efeito tão doloroso assim, porque as relações estão com outra fluidez e outras configurações mesmo de afeto”, diz ela, que relata ainda o excesso de cobranças por não ter um relacionamento. A pesquisadora acredita que essas cobranças estão relacionadas aos marcadores de idade e geração, que atravessam a experiência racial, classificando as pessoas como mais ou menos disponíveis e atraentes.
Solteiro há 8 anos, Matheus Lens vive diversas formas de relações com pessoas de diferentes raças ou etnias. Mas para namorar e ter uma troca mais profunda no cotidiano, prioriza pessoas negras.
“Eu sou um homem negro, gay que tento ao máximo ter consciência de classe, raça e entender como minha historia e atitudes influenciam na minha vida”, afirma.
Para a psicóloga Iana Sampaio, 24, pessoas negras têm dificuldade em encontrar relacionamentos que sejam expostos. Ela ressalta ainda que este grupo também enfrenta dilemas ao se relacionarem com pessoas brancas. “São chamados de ‘palmiteiros’. Acabam caindo nos estereótipos que os próprios negros colocam. Ou seja, existe uma pressão quando você está fora da bolha, e existe outra quando você está dentro dela. Parece que negros só podem se relacionar com certos tipos de padrões", completou a psicóloga.
O amor preto pode ser a cura e o caminho para uma experiência de relacionamento nunca antes vivida
Afrocupido
O carioca Filipe Dornelas, de 31 anos, é o idealizador de um aplicativo exclusivamente voltado para encontrar um amor negro: o Denga Love. Criado em 2022, o aplicativo reúne mais de 150 mil usuários e está disponível para iOS e Android. A Bahia, atualmente, está entre os três estados engajados no app, contando com mais de 15 mil inscritos, sendo mais de 80% só em Salvador.
O desenvolvedor de software era usuário de aplicativos de relacionamento, mas sempre teve preferência em se relacionar com uma pessoa negra. Porém, nos aplicativos mais populares, encontrava dificuldade em conhecer pessoas da mesma etnia. Após esse incômodo, ele decidiu criar um aplicativo onde pessoas negras pudessem ter trocas de afeto entre elas.
“Eu tive diversas experiências negativas em outros aplicativos, a ponto de pessoas verbalizarem preconceitos diretos a mim. Mas além de ser programador, eu também sou uma pessoa que não gosta muito de levar desaforo pra casa. Houve um dia em que uma situação dessa aconteceu, mas aconteceu no momento em que estava com tempo e os recursos para resolver o problema. Coloquei na cabeça que era isso e comecei a escrever o que seria o primeiro código do app”, contou Filipe.
De acordo com Filipe, o aplicativo é um espaço seguro para pessoas negras. Não é separação, mas união e acolhimento.
“Eu imagino crianças nascendo de pais negros que se conheceram dentro do Denga. Juntar pessoas racialmente conscientes é um dos passos para que, no futuro, nós tenhamos pessoas mais racialmente conscientes. Além disso, espero que a gente consiga ser o principal ponto de encontro quando uma pessoa negra pensar em se relacionar com alguém”, explicou.
O desenvolvedor de software acredita que o amor afrocentrado é uma decisão. Quando alguém opta por se relacionar com uma pessoa negra, encontrou motivos para buscar essa conexão cultural mais profunda. Embora nem todas as pessoas negras compreendam o amor preto, a maioria está disposta e apta a vivê-lo.
“O amor preto pode ser a cura e o caminho para uma experiência de relacionamento nunca antes vivida, mas saiba que sem sinceridade, escuta ativa e empatia, ele vai ser só mais um. Seja sincero, demonstre afeto e seja paciente”, aconselha Filipe.
*Sob supervisão de Bianca Carneiro
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