CERIMÔNIA DO PERTENCIMENTO
Artista visual baiano Jayme Fygura ganha exposição com obras inéditas
Um ano e meio após sua morte, o artista, conhecido como o homem da máscara de ferro, ganha homenagem
Por Eugênio Afonso

‘Figura’ icônica da capital do dendê, o artista visual baiano Jayme Fygura (1959-2023), que nos deixou em novembro de 2023, aos 64 anos, era autodidata e costumava circular pelas ruas do Centro Histórico de Salvador totalmente coberto por máscaras e armaduras feitas de diversos materiais.
Jayme era conhecido por transformar seu próprio corpo em uma tela viva, incorporando elementos de performance e intervenção urbana em suas obras como manifesto de expressão artística e política. Além de artista plástico, era também poeta, músico e desenhista, e produzia seu trabalho em um ateliê labiríntico batizado de Sarcófago.
Agora, o artista, que não teve o devido reconhecimento em vida, é celebrado na exposição Jayme Fygura: De Corpo e Alma, que abre hoje, na CAIXA Cultural. A visitação pública começa a partir de amanhã e vai até 6 de julho, sempre de terça a domingo, das 9h às 17h30, com entrada franca.
Este tributo póstumo ao artista plástico, poeta e performer que marcou a cultura soteropolitana com sua estética singular não deixa de ser também uma forma de reparar simbolicamente esse apagamento histórico.
Idealizada pelo marchand e colecionador Ernesto Bittencourt, e com curadoria do artista e professor soteropolitano Danillo Barata, a exposição quer celebrar o legado de um performer essencial para a cultura afro-baiana e nacional, ao mesmo tempo em que propõe uma reflexão sobre identidade, memória, espiritualidade e resistência.

“Jayme Fygura: De Corpo e Alma busca recriar o impacto sensorial das obras de Fygura, reposicionando seu trabalho no campo das artes contemporâneas e da crítica social. A mostra é uma homenagem póstuma e também um rito de passagem, uma cerimônia estética de reconhecimento, pertencimento e continuidade”, sentencia o curador.
Para Danillo, o artista cruz-almense ocupa um lugar singular e fundamental nas artes plásticas baianas por sua capacidade de tensionar as fronteiras entre arte, vida e resistência.
“Suas esculturas, máscaras e pinturas exploram o corpo como território de inscrição da violência, mas também da reinvenção. Em sua produção, Jayme se apropriava de materiais reciclados, sucatas e detritos urbanos, subvertendo a estética da precariedade em uma estratégia de potência criativa”, explicita o curador.
Responsável pela preservação e difusão da obra de Fygura, Ernesto acredita que o trabalho do performer baiano é um testemunho vivo da força da cultura afro-brasileira e de sua resiliência, e que esta mostra é um tributo à genialidade e à presença indelével de Jayme na história da arte contemporânea.
“Quando idealizei essa exposição, tive como norte preservar e divulgar o legado artístico de Jayme. Danillo Barata utilizou com maestria os inúmeros itens que vão além de obras de arte, tais como documentos, manuscritos, croquis de projetos, indumentárias etc. que fui adquirindo ao longo do tempo”, informa Bittencourt.
Corpo negro
Ernesto é mais um dos que veem Jayme como um ícone brasileiro das artes plásticas. “Para além de um performer 24/7, um caso raro, talvez único, que circulou mascarado com suas indumentárias recobertas por metais e outros materiais pelas ruas de Salvador, por mais de três décadas, ele foi um artista autodidata multifacetado que utilizou as mais diversas linguagens, como performance, desenho, pintura, escultura e música de forma pujante”.
Na CAIXA Cultural, o público vai entrar em contato com 50 obras inéditas, além de outras já conhecidas – peças provenientes de colecionadores particulares, do próprio artista, de acervos institucionais e outras fontes.
“O aspecto mais significativo da mostra está justamente na apresentação de obras inéditas, com destaque para o campo da pintura – uma vertente ainda pouco conhecida da produção de Jayme, mas que se revela com grande força e expressividade nesta seleção curatorial”, enfatiza Danillo.

São 32 pinturas em acrílico sobre tela e 23 objetos, incluindo esculturas em ferro, cabeças, falos de Exu, manuscritos e vestimentas performáticas. Trabalhos que evidenciam a profunda conexão do artista com a cosmogonia afro-brasileira, sua crítica à necropolítica e sua elaboração poética sobre o corpo como território.
Também fazem parte da exposição projeções audiovisuais e o documentário Sarcófago, do cineasta baiano Daniel Lisboa, que investiga o universo criativo de Fygura. Além disso, o público poderá assistir a um registro inédito de um show do artista – ele teve uma banda de punk-rock –, também gravado por Daniel.
“Sarcófago é um curta-metragem sobre o processo criativo de Jayme. Tem muita pouca fala no filme. É bastante imagético e a gente tem o privilégio de poder acompanhar esse processo de Jayme, que é muito visceral, muito forte. O filme acaba sendo mais uma camada estética dentro do processo de criação de Jayme. Existe uma simbiose entre a criação dele e o filme que eu propus”, detalha Lisboa.
Ele frisa ainda que a estética de Fygura é o oposto da cultura solar praiana. “Ele estava conectado com a noite, com o obscuro, com a margem, com o rock and roll. Carregava uma elegante melancolia existencial, capaz de produzir uma obra rebelde, completamente desvinculada da cidade publicitária vendida como terra da alegria”.
“Então, [esta exposição] vai ser uma oportunidade incrível das pessoas, tanto as que já conhecem o trabalho de Jayme quanto as que não conhecem, se aprofundarem um pouco mais na obra desse artista visionário. Jayme sempre foi um afrofuturista”, arremata Daniel.
Vivendo à margem
Para muitos, Fygura era um artista performático que usava a cidade de Salvador como uma galeria expandida, intervindo diretamente nos espaços públicos com suas máscaras e indumentárias que denunciavam, protegiam e afirmavam a existência do corpo negro.
“Ele era alguém que soube traduzir em arte as dores, as tensões e as esperanças de uma existência marcada pela marginalização e pela ancestralidade. Fygura era a própria obra, um corpo performático que circulava entre o ritual e a distopia, entre o silêncio e o grito. Sua existência foi denúncia e cura, gesto e silêncio, presença e mistério”, lembra Danillo.
Barata admite ainda que Jayme Fygura não foi devidamente reconhecido em vida porque viveu e produziu à margem do circuito institucional e do mercado da arte, muitas vezes invisibilizado por estruturas racistas e excludentes.
“Seu corpo negro, mascarado e inquieto, desestabilizava o olhar normativo. A cidade ora o reconhecia como ícone, ora o rejeitava. Sua arte afrontava convenções, operava no limite entre o humano e o sagrado, entre delírio e lucidez. O reconhecimento póstumo é, infelizmente, reflexo de um sistema que frequentemente valoriza a diferença apenas após sua ausência física”, admite Danillo.
Daniel Lisboa acha, inclusive, que tanto o governo da Bahia quanto a prefeitura de Salvador deveriam criar um memorial dedicado a Jayme em seu próprio ateliê – o Sarcófago –, entalhado no Carmo. Seria um espaço dedicado à obra desse artista baiano que foi vanguardista dentro das artes visuais.
“Eu acho que é importante dizer que as autoridades não deveriam perder essa oportunidade de fazer um centro cultural para honrar a memória de Jayme. Fazer com que as pessoas tenham contato com essa estética tão disruptiva, desviante e renovadora”, sugere o cineasta.
Por fim, Danillo Barata lembra que Jayme queria, através de sua produção artística, existir, resistir e deixar uma marca original. “Sua arte era ao mesmo tempo proteção, denúncia e cura. Ele buscava, com seu trabalho, afirmar sua humanidade frente à indiferença, à violência urbana e à exclusão social”, finaliza o curador.
Além da exposição, a programação inclui oficina de criação de instrumentos musicais com materiais reciclados. Alunos da rede pública de ensino participarão de visitas guiadas, promovendo acesso à arte e à trajetória de Jayme Fygura.
Realizada pela Ernesto Bitencourt Galeria de Arte, Jayme Fygura: De Copro e Alma oferece recursos de acessibilidade, incluindo tradução e interpretação em Libras, placas em braile e audiodescrição. O patrocínio é da CAIXA e do Governo Federal. Mais informações: caixacultural.gov.br.
Jayme Fygura: De corpo e alma / Caixa Cultural, rua Carlos Gomes 57, Centro / de 16 de abril a 06 de julho / Terça a domingo, das 9h às 17h30 / Gratuito
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