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CULTURA

Biografia do Mundo Livre S/A conta uma história de resistência nordestina

Fundada há 40 anos no Recife, banda de Fred Zero Quatro segue relevante e necessária

Por Chico Castro Jr.

18/12/2024 - 5:40 h
Imagem ilustrativa da imagem Biografia do Mundo Livre S/A conta uma história de resistência nordestina
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Fechar 40 anos à frente de uma banda de rock no Brasil não é para qualquer um. Ponta de lança do movimento mangue beat ao lado de Chico Science & Nação Zumbi, o Mundo Livre S/A bateu nessa marca neste ano de 2024. Para o ano que vem, o grupo liderado por Fred Zero Quatro já planeja uma turnê pelo país, para marcar a data. Enquanto o giro não começa e chega aqui em Salvador, vale ler a biografia Mundo Livre S/A 4.0 do punk ao mangue, de Pedro de Luna.

Obra de fôlego, com mais de 500 páginas, o livro foi viabilizado por campanha de financiamento coletivo. Desde seu lançamento, o autor corre o país em eventos de lançamento, muitas vezes contando com a presença do próprio Fred e de ex-membros. Em Salvador, Luna fez o lançamento durante festival Digitália, em setembro último, no Goethe-Institut. Mas quem perdeu essa oportunidade não precisa ficar chateado, pois haverá outra: “Coloca na matéria que o livro será lançado no sábado, 25 de janeiro, na Feira da Cidade, aí em Salvador”, solicitou Luna.

Biógrafo da banda Planet Hemp (Planet Hemp: mantenha o respeito, 2018), de Champignon (CHAMP - a incrível história do baixista Champignon do Charlie Brown Jr., 2022) e do quadrinista Marcatti (Marcatti: Tinta, Suor E Suco Gástrico, 2014), Luna conta que a experiência nestes e em outros livros tornou a experiência com o Mundo Livre S/A mais leve e ágil.

“Por incrível que pareça, para esta biografia com mais de 500 páginas foram necessários ‘somente’ dois anos. Acredito que, com a prática, a tendência é ficar mais rápido, pois eu vou criando a minha própria metodologia e aproveitando pesquisas de outros livros semelhantes. Mundo Livre S/A 4.0 – do punk ao mangue já é a minha nona biografia e, além de muita pesquisa, entrevistei 75 pessoas”, conta Luna ao jornal A TARDE.

Luna entrevistou inclusive ex-integrantes (além dos atuais), como o cantor Otto – que participou dos dois primeiros discos como percussionista. Também deram o seu depoimento os músicos China, Cannibal (da banda Devotos), Karina Buhr, Fabio Trummer (Eddie), o produtor Mario Caldato Jr, a cantora Stela Campos, DJ Dolores, Jorge du Peixe, Lucio Maia, Pupillo, Dudu Marote, Charles Gavin, Apollo 9, Eduardo Bid e Edu K – os seis também produtores de discos da banda – além do jornalista e escritor Xico Sá.

Punks de Candeias

Fundada em 1984, o Mundo Livre S/A foi, durante a maior parte de sua existência, a banda dos três irmãos Montenegro: Fred (guitarra e cavaquinho), Fábio “Goró” (baixo) e Xef Tony (bateria). Oriundos de uma família de classe-média com seis irmãos, se criaram à beira-mar, no bairro de Candeias em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife. Entre dias de surf e sol, ouviam Jorge Ben – Tábua de Esmeraldas mudou a vida de Fred – e todos os discos de rock em que podiam botar as mãos, o que não era muito, visto que viviam quebrados.

Criaram a banda com amigos, usando instrumentos de baixa qualidade, e eram de fato uma banda punk bem tosca naqueles anos iniciais. Tocavam em qualquer barzinho que lhes abrisse as portas neste período pré-manguebeat.

Com o tempo, foram se estabelecendo e começaram a fazer conexões com outros doidões locais, construindo aos poucos uma cena: Renato L (coautor com Fred e Chico Science do ‘Manifesto Caranguejos Com Cérebro’, que lançou o movimento manguebeat), DJ Dolores, Otto e um certo b-boy (dançarino de break) de nome Francisco de Assis França, futuro Chico Science.

Outro nome fundamental na trajetória da banda e do movimento foi Xico Sá, que acompanhou tudo desde o início e, já morando e trabalhando em São Paulo no início dos anos 1990, começou a escrever sobre o que ocorria no Recife para a Folha de S. Paulo. Em 1992, a revista Bizz, então muito influente, começou a dar atenção ao movimento, o que gerou interesse nas gravadoras. O resto é história.

Clima vibrante captado

História que coube a Pedro de Luna contar, ao perceber que o MLS/A se aproximava da quarta década. “Eu era apenas um fã e nada mais. Eu só entrevistei o grupo uma única vez, no ano 2000. Mas quando estava escrevendo a biografia do Planet Hemp, gostei muito das histórias da Hemp Family. Tanto que essa música do Planet cita nominalmente as bandas MLS/A, CSNZ e Jorge Cabeleira. Então fiquei com aquela pulga atrás de orelha de um dia escrever sobre algum mangueboy. Ao perceber que em 2024 o MLS/A faria 40 anos de carreira, achei que era o momento perfeito para, enfim, contar a história dos punks de Candeias”, relata Pedro.

Entre as muitas qualidades do livro, pode-se citar que ele capta muito bem o clima de agitação que marcou a década de 90, quando uma nova geração roqueira emergiu em várias partes do Brasil, como em Recife, Brasília (Raimundos, Little Quail), Belo Horizonte (Pato Fu) etc. “Nas minhas biografias eu sempre faço questão de contextualizar o artista, porque parte do sucesso ou das suas conquistas vêm do ambiente, de quem está à sua volta. Os anos 1990 tiveram muitas particularidades: foi a década em que a MTV chegou ao Brasil e fomentou o mercado de videoclipes, foi quando surgiram festivais independentes de Norte a Sul, quando pipocaram fanzines, jornais alternativos, suplementos jovens em grandes jornais, programas de TV com espaço pra bandas desconhecidas, e programas de rádio dedicados ao underground, inclusive em rádios comunitárias e universitárias”, lembra Luna.

“Por conta do estouro do grunge, as grandes gravadoras foram atrás de ‘novos Nirvanas’, o que fomentou a criação de selos para artistas novos nas principais companhias. E foi num deles, o Banguela Records, criado pelo (jornalista) Carlos Eduardo Miranda com a banda Titãs dentro da Warner, que o Mundo Livre S/A debutou. Não apenas eles, mas também Raimundos e Maskavo Roots lançaram pelo Banguela seus primeiros álbuns. Enfim, havia um interesse pelo “novo” e esse sentimento se alastrou Brasil afora”, acrescenta.

Menos bem-sucedida em termos comerciais do que Chico Science & Nação Zumbi, o MLS/A é uma espécie de Velvet Underground brasileiro, no sentido de exercer grande influência pela criatividade e ousadia. “(Na verdade) O apelido deles era ‘The Clash brasileiro’ por conta da latinidade e do ativismo. Além de ser uma das referências deles. Tanto que a única coletânea da banda se chama Combat Samba, numa brincadeira com o álbum Combat Rock (1983), dos britânicos”, conta Luna.

“De fato, nenhuma banda do mangue fez grande sucesso no rádio brasileiro ou na grande mídia. Talvez o MLS/A tenha sido relegada a um público mais cool, mais intelectual, porque não faz um som fácil, digerível e descartável. Mas, ao mesmo tempo, essa pegada não comercial pode ser o que faz a banda ter tantos fãs fiéis até hoje”, conclui.

Mundo Livre S/A 4.0 do punk ao mangue / Pedro de Luna / Ilustre/ 554 p./ R$ 130/ @biografiamundolivresa (Instagram)

Entrevista - Pedro de Luna

Como é sua história com o MLSA? Como chegou à conclusão que deveria biografá-los?

Eu era apenas um fã e nada mais. O mlsa sempre esteve entre as minhas bandas favoritas e eu só entrevistei o grupo uma única vez, no ano 2000. Mas quando estava escrevendo a biografia do Planet Hemp, gostei muito das histórias da Hemp Family. Tanto que essa música do Planet cita nominalmente as bandas mlsa, CSNZ e Jorge Cabeleira. Então fiquei com aquela pulga atrás da orelha de um dia escrever sobre algum mangueboy. Ao perceber que em 2024 o mlsa faria 40 anos de carreira, achei que era o momento perfeito para, enfim, contar a história dos punks de Candeias.

O MLSA, a despeito de todas as suas qualidades (ou talvez por causa delas) nunca foi um estouro popular, ainda que tenha tido algumas músicas tocando em rádio. Seria a banda de Fred Zero Quatro uma espécie de Velvet Underground do mangue, dada sua grande influência?

Boa pergunta. O apelido deles era “The Clash brasileiro” por conta da latinidade e do ativismo. Além de ser uma das referências do mundo livre s/a. Tanto que a única coletânea da banda se chama “Combat Samba” numa brincadeira com o álbum “Combat Rock”, dos britânicos. De fato, nenhuma banda do mangue fez grande sucesso no rádio brasileiro ou mesmo na grande mídia. Talvez o mlsa tenha sido renegada a um público mais cool, mais intelectual, porque não faz um som fácil, digerível e descartável. Mas, ao mesmo tempo, essa pegada não comercial pode ser o que faz a banda ter tantos fãs fiéis até hoje. Curiosamente, a música de maior sucesso do mundo livre s/a é uma balada, “Meu Esquema”, mas em parte por ter sido a trilha de um programa da Luana Piovani na MTV.

Uma coisa que me pegou e que deve pegar todo mundo que viveu aquele ambiente efervescente dos anos 90 foi que você capta muito bem no livro o clima da época, que era muito faça você mesmo e que era tão legítimo que levou bandas locais acabarem atraindo uma parte grande do público roqueiro de suas próprias cidades, até então distante. Foi assim em Recife, foi assim em Salvador, foi assim em Brasília, foi assim no Rio, foi assim em Porto Alegre. O que foi que aconteceu nos anos 90, que foi tão diferente do que ocorreu nos 80, por exemplo?

Nas minhas biografias eu sempre faço questão de contextualizar o artista, porque parte do sucesso ou das suas conquistas vêm do ambiente, de quem está à sua volta. Os anos 1990 tiveram muitas particularidades: foi a década em que a MTV chegou ao Brasil e fomentou o mercado de videoclipes, foi quando surgiram festivais independentes de Norte a Sul, quando pipocaram fanzines, jornais alternativos, suplementos jovens em grandes jornais, programas de TV com espaço pra bandas desconhecidas, e programas de rádio dedicados ao underground, inclusive em rádios comunitárias e universitárias. Ainda sobre a MTV, tanto mlsa quanto CSNZ, Planet Hemp e tantas outras bandas amigas concorreram na primeira edição do Video Music Brasil, em 1995, que sagrou de vez os Raimundos. O videoclipe do mundo livre s/a que concorreu foi o de “Livre Iniciativa”, cujo diretor nunca havia feito um antes. Ele era fã da banda e abriu a sua própria casa em São Paulo para realizar este sonho. Por conta do estouro do grunge, as grandes gravadoras foram atrás de “novos Nirvanas”, o que fomentou a criação de selos para artistas novos nas principais companhias. E foi num deles, o Banguela Records, criado pelo Miranda com a banda Titãs dentro da Warner, que o mundo livre s/a debutou. Não apenas o mlsa, mas o Raimundos e o Maskavo Roots também lançaram pelo Banguela o seu primeiro disco. Enfim, havia um interesse pelo “novo” e esse sentimento se alastrou Brasil afora.

Quantos anos de pesquisa leva para escrever um livro tão bem pesquisado quanto este? Quantos entrevistados?

Por incrível que pareça, para esta biografia com mais de 500 páginas foram “somente” dois anos. Acredito que, com a prática, a tendência é ficar mais rápido pois eu vou criando a minha própria metodologia e aproveitando pesquisas de outros livros semelhantes. “Mundo Livre S/A 4.0 – do punk ao mangue” já é a minha nona biografia e, além de muita pesquisa, entrevistei 75 pessoas.

Teve alguma dificuldade com algum membro (ou pessoa próxima) ao colher depoimentos?

Todo mundo a quem eu recorri foi solícito e prestativo. As únicas três pessoas que eu não consegui entrevistar são muito ocupadas e seus agentes não conseguiram espaço na agenda: os músicos Paulo Miklos e Nando Reis, que além de serem Titãs participaram do primeiro disco do mundo livre s/a, e o cineasta Kleber Mendonça Filho, que estava no meio de uma gravação. Mas nada disso comprometeu o livro porque as pessoas mais importantes deram o seu depoimento e agregaram muito à obra.

Uma das características mais marcantes do MLSA é o fato de ter sido formada por três irmãos que brigava o tempo todo. O quanto isso serviu como faísca criativa dentro da banda e o quanto isto os atrapalhou?

Qualquer iniciativa familiar tem ônus e bônus, seja uma banda, um comércio ou uma empresa. No caso do mundo livre s/a, precisamos destacar que eles moravam em Candeias, que é uma região praiana no município de Jaboatão dos Guararapes. Então, numa época em que ninguém tinha carro, não existiam os aplicativos nem nada, formar um grupo musical dentro de casa era a melhor forma para ensaiar bastante sem gastar muito tempo ou dinheiro. Inclusive, num momento da história, os três irmãos ensaiavam no porão do prédio em que moravam! Por outro lado, depois que o livro ficou pronto, vieram à tona algumas respostas. Será mesmo que Fábio “Goró” queria ser o baixista ou foi o instrumento que sobrou pra ele? Apesar de nunca mais ter tocado em outras bandas, hoje ele toca guitarra. Além disso, foram várias brigas envolvendo Fábio e outros integrantes, como Otto e Bactéria, e até mesmo os dois primeiros empresários, Betinho e Gutie. O baixista só foi demitido da banda depois de 20 anos na formação, e mesmo assim porque chegou ao limite do insuportável. E coube a primeira empresária mulher da banda essa tarefa, a Alê Oliveira, que é irmã do baterista e produtor Pupillo, que foi da Nação Zumbi. Tudo isso está contado em detalhes no livro.

Você sempre lança seus livros por meio do crowdfunding, ao invés de por alguma editora medalhona. Isso se deve à falta de interesse das gravadoras ou é uma preferência sua, mesmo? É mais vantajoso?

Nem sempre é por crowdfunding, mas foi assim que viabilizei as biografias do Speed, do Champignon (Charlie Brown Jr) e do professor e parlamentar Chico Alencar. Eu vejo mais como uma pré-venda, uma forma de trazer os fãs para perto do projeto, já que o nome de cada contribuidor sai impresso no livro. Já fiz uma campanha com a Catarse e três com a Kickante, e na real quem toca a campanha de financiamento coletivo é você mesmo, a plataforma é apenas um local para pagamento e controle. A biografia “Planet Hemp mantenha o respeito” saiu pela Belas Letras, a mesma que acabou de lançar a bio do Chico Science. Mas, segundo ela, até hoje estou quitando o meu adiantamento na assinatura do contrato pois eu só recebo 10% dos direitos autorais. Tenho preferido fazer pela minha própria Ilustre Editora porque além de ficar com os 100% dos direitos, eu tenho total controle sobre a obra: quando lançar, como, quantas páginas e fotos vai ter, quais profissionais serão contratados etc. Adoro participar de todas as etapas e de ter contato direto com os leitores!

Que novo livro / biografia podemos esperar de sua lavra no futuro próximo?

Sinceramente ainda não pensei nisso, pois espero rodar o ano que vem com esse livro novo. Gostaria muito de lançar em Brasília, Belo Horizonte, em Pernambuco e na região Sul, onde a banda tem muitos fãs. O mundo livre s/a é ainda uma banda muito relevante e tem muita lenha pra queimar. Mas eu gostaria de me aprofundar numa cena nova ou biografar alguém que eu admire além do plano musical, como O Rappa, Baiana System e Black Alien. Eu tenho alguns livros iniciados que não continuei justamente por falta de investimento. Um deles é sobre os festivais independentes no Brasil, para o qual entrevistei a Sandra, que organiza o Palco do Rock em Salvador. Mas por hora estou aberto a convites, sobretudo para livros que já cheguem com financiamento.

Fique a vontade para acrescentar qualquer coisa que não perguntei e vc ache importante dizer

Apesar da descrença com a política cultural brasileira, continuarei inscrevendo os meus livros em editais, mesmo sem nunca ter sido contemplado em um. E se não ganhar, continuarei escrevendo e publicando por conta própria, pois sou formado na escola do “faça-você-mesmo”.

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