CÊNICAS
Clássico contemporâneo, ‘Fala Baixo Senão Eu Grito’ volta ao Gregório de Mattos
Peça segue em cartaz até este domingo, 27
Por Maria Raquel Brito*
Desde o último fim de semana, o palco do Teatro Gregório de Mattos abriu espaço para o universo onírico de Maria Mendonça de Morais, a Mariazinha. Foi o início de mais uma temporada do espetáculo Fala Baixo Senão Eu Grito, baseado no texto icônico escrito por Leilah Assumpção em 1969. A peça segue em cartaz até este domingo.
Com direção de Georgenes Isaac, o espetáculo traz a história de Mariazinha, uma funcionária pública que mora em um “pensionato para moças finas e honestas”, como ela mesma define. Infantilizada, ela vive solitária no quarto, a não ser pelos objetos que tomam conta do cômodo e com os quais ela conversa com frequência.
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As coisas mudam quando, em uma noite, essa rotina é interrompida quando um estranho entra no cômodo. Com ele, Mariazinha reflete sobre a própria vida e as frustrações, além de encarar questões de gênero, sexualidade e machismo.
“É uma peça que trata da vida de muitos de nós, que temos Mariazinha internas: pessoas que vivem dentro de um quarto mental, aprisionadas por uma série de estruturas que nos prendem socialmente”, diz o diretor.
Isaac dirigiu o espetáculo pela primeira vez em 2013 e o retomou em 2018, no Rio de Janeiro. Em 2024, já o montou duas vezes na capital baiana. Nas duas últimas temporadas, quem dá vida à Mariazinha é a atriz Carla Lucena, contracenando com Negro Du na pele do Homem.
Segundo Lucena, interpretar Mariazinha tem sido um desafio satisfatório. “Faço teatro há muitos anos e já fiz da comédia ao drama, mas sempre cada um na sua caixinha. Mariazinha, não. Ela tem de tudo. Então eu fico administrando isso, vou subindo e descendo na emoção. Tem me deixado muito contente entender quem é Mariazinha e se ela existe no nosso cotidiano também”, diz a atriz.
Autodescoberta
Na versão original, o público se depara com um quarto decorado com laços, brinquedos, cores e muitos frufrus, que dão a Mariazinha um ar ainda maior de menina. Ao se apropriar da peça, Isaac foge do realismo e traz outra abordagem para o espaço em que a trama se dá: agora, estamos dentro da mente da protagonista. Esse efeito é alcançado a partir de recursos como um cenário inteiramente branco, sem móveis ou nada que faça referência a um pensionato, além do uso de lanternas de cabeça e de mão pelos atores para iluminar um ao outro.
“Eu não queria de maneira nenhuma retomar esse texto com uma montagem realista. A gente parte da provocação de que ‘deu um branco’ na cabeça de Mariazinha e talvez ela esteja criando tudo na própria mente. É um convite para o público entrar na cabeça dela e, a partir disso, descobrir que ela precisou se projetar em um homem para que ela pudesse questionar o que já sabia: que era oprimida”, defende Isaac.
O cenário é também um convite para a criatividade dos espectadores. O diretor experimenta a neutralidade em contraste com as imagens concretas e o excesso de informação que o cinema e a TV têm trazido. Através das escolhas feitas em cena, ele chama o público para fantasiar junto. “Eu acho que o poder de imaginar é uma das potencialidades do ser humano. Possibilitar isso para as pessoas através da nossa obra tem sido o meu maior desejo, porque o futuro se dá nesse lugar. Eu imagino o futuro para ele acontecer”, diz.
A possibilidade de que tudo seja criação da mente de Mariazinha ronda o texto de Assumpção há muito tempo e é evidenciada nos 50 minutos do espetáculo de Isaac, em que o diretor brinca com a figura do invasor do quarto, conhecido apenas como “Homem”. Seria o personagem apenas uma projeção de Mariazinha para escapar da solidão? Na performance de Carla Lucena e Negro Du, esse jogo mental entra em cena através de falas simultâneas dos dois personagens, por exemplo.
“A gente traçou os perfis dos personagens. Ela é o inconsciente da história, já a versão dele é o consciente. O Homem traz toda a barbaridade da sociedade, a violência, os palavrões, o modo sutil e grosseiro de tratar as pessoas, e ela vive no mundo de fantasia que ela criou nesse quarto – que para nós, é imaginário. Nós queríamos trazer essa aura de pesadelo e sonho e como a cabeça dessa personagem funciona”, conta Lucena.
Real ou fruto da imaginação da protagonista, o Homem representa também a solitude, à sua própria maneira. A invasão ao quarto de Mariazinha é uma oportunidade de conversar com alguém – em um ponto do texto, eles chegam a trocar confissões.
“Existe ali um compartilhamento de vulnerabilidades. Eu digo que Fala baixo é uma dramaturgia que fala sobre a solidão nos centros urbanos. Como nós, homens e mulheres, estamos vivendo cada vez mais apertados em quadrados de quarto e sala para que possamos viver numa cidade grande. É um texto muito valioso nesse sentido, porque traz as questões de gênero, colocando a mulher na centralidade da história, e trata também de questões inerentes à atual natureza humana, que é esse estado de solidão – o estado do fone de ouvido, do apartamento e do trabalho remoto”, diz o diretor.
Atemporal
Em toda a sua carreira, a dramaturga Leilah Assumpção, hoje com 81 anos, se dedicou principalmente a escrever peças sobre a mulher e seu lugar na sociedade.
Fala Baixo Senão eu Grito foi a primeira, em plena Ditadura Militar. A primeira encenação da peça foi protagonizada por Marília Pêra, com direção de Clóvis Bueno.
Desde a primeira montagem, o texto recebeu reconhecimentos, como o Prêmio Molière e o da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), então Associação Paulista de Críticos Teatrais.
Assumpção foi pioneira em destacar a mulher numa sociedade que insiste em oprimir mulheres. Mais de cinco décadas depois, o espetáculo poderia muito bem estar desatualizado, mas segue refletindo a realidade de muitas.
“Quando fizemos a peça no Rio, percebi o mesmo público daqui, mulheres mais velhas que se interessavam pela narrativa. E sempre que for necessário, eu remontarei, porque é uma trama que continua a falar com todos nós”, afirma o diretor.
Na temporada atual, que teve início na última semana, a produção experimenta um novo horário, para ampliar o alcance do espetáculo.
Na sexta-feira e no sábado, a apresentação acontece às 19h. No domingo, é pela manhã, às 11h. Para Carla Lucena, o horário possibilita um dia de folga ideal: dá para ir ao teatro e ainda sair a tempo de almoçar e passear pelo coração da cidade.
‘Fala Baixo Senão Eu Grito’ / De amanhã a domingo. Sexta-feira e sábado, às 19h; domingo, às 11h / Teatro Gregório de Mattos (praça Castro Alves) / R$ 40 e R$ 20 (meia)
*Sob a supervisão do editor Chico Castro Jr.
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