ENTREVISTA
Cleber Eduardo: “’Música preta no Brasil’ e não ‘do Brasil’"
"Todas as músicas pretas nos interessam”, diz o curador da Mostra de Cinema de Ouro Preto
Por João Paulo Barreto*

Na 18ª edição CineOP - Mostra de Cinema de Ouro Preto, que teve início na última quarta e se encerra hoje, a escolha da temática histórica Imagens da MPB - Música Preta no Brasil demonstrou-se um desafio para a equipe de curadores.
Um deles, Cleber Eduardo, que também atua como professor em disciplinas teóricas e práticas de cinema, com ênfase em documentário e cinema brasileiro, em entrevista para A TARDE, explicou que a escolha do tema foi guiada por um norte que se relaciona com a ideia da música nacional buscar ser atrelada a uma identidade do que é ser brasileiro.
“Junto veio essa questão se ela era a ‘música preta brasileira’ ou se era uma ‘música preta no Brasil’. Até mais do que ‘do Brasil’. E o que me norteou nessa reflexão? Eu acho que a questão do brasileiro, quando ela está atribuída à cultura e à arte, nunca é só, digamos assim, uma nacionalidade. Essa nacionalidade já vem acompanhada de uma certa identidade nacional. E essa identidade nacional, inevitavelmente, não é só no caso do Brasil” explica Eduardo.
“Eu acho que muita coisa do que não contempla os pressupostos dessa identidade brasileira acaba ficando um pouco de fora. No caso da música preta, tem um agravante na complexidade. Porque a música está muito no imaginário do que é a nossa identidade. Mais do que o cinema, mais do que as outras artes do teatro ou a literatura. Quer dizer, a música é o que puxa a nossa identidade. É o que puxa essa brasilidade. E a música preta é muito forte nesse componente das nossas raízes nacionais”.
No papo abaixo, o curador desenvolve esse pensamento e aborda a feliz escolha de Tony Tornado como homenageado da CineOP 2023.
A ideia de abordar como temática histórica o recorte Imagens da MPB - Música Preta no Brasil foi desenvolvida como? Como funcionou essa análise da diferenciação destacada na divulgação da CineOP entre música preta brasileira (ou do Brasil) e a música preta no Brasil?
Quando essa ideia surgiu como um primeiro pensamento, ela já veio como MPB. E isso, claro, é algo que não é novo. Muita gente tem usado MPB como Música Preta Brasileira. Mas veio aqui, em primeiro lugar, para afirmar essa outra MPB, que muitas vezes não está dentro da MPB tradicional, que é mais predominantemente branca. E junto veio essa questão se ela era a ‘Música Preta Brasileira’ ou se ela era uma ‘Música Preta no Brasil’. Até mais do que ‘do Brasil’. E o que me norteou nessa reflexão? Eu acho que a questão do brasileiro, quando ela está atribuída à cultura e à arte, nunca é só, digamos assim, uma nacionalidade. Essa nacionalidade já vem acompanhada de uma certa identidade nacional. E essa identidade nacional, inevitavelmente, não é só no caso do Brasil. É que o Brasil, enfim, tem complexidades por sua pluralidade e formação cultural. Outros países, também. Mas nós somos uma sociedade historicamente, do século XVIII pra cá, muito preocupada com essa identidade nacional. Isso é sempre uma disputa interna, do que é o brasileiro, do que são as características da brasilidade. Eu acho que essa identidade deixa muita coisa de fora. Muita coisa do que não contempla os pressupostos dessa identidade brasileira acaba ficando um pouco de fora. E eu acho que no caso da música preta tem um agravante na complexidade. Porque a música está muito no imaginário do que é a nossa identidade. Mais do que o cinema, mais do que as outras artes do teatro ou a literatura. Quer dizer, a música é o que puxa a nossa identidade. É o que puxa essa brasilidade. E a música preta é muito forte nesse componente das nossas raízes nacionais e brasileiras. Ela é muito presente nesse imaginário. Só que, ao mesmo tempo, eu acho que quando a gente pensa por essa perspectiva, de uma certa forma reduzimos o que é o brasileiro, o que é a brasilidade, do que quiser chamar. Mas, também, reduzimos o que é música preta, entende? Se eu penso a música preta por uma perspectiva de brasilidade, então, eu já vou em um nicho dessa música preta e vou ignorar estrategicamente outros nichos que não cabem aqui. Então, tinha uma provocação desde o nome. O primeiro nome que eu tinha pensado era ‘MP do B - Música Preta do Brasil’. Mas isso me incomodava, porque ainda tinha uma propriedade do Brasil no nome. E aí a gente decidiu ficar com ‘no Brasil’. Destacamos a geografia. Mas sem tentar pressupor o que é essa música preta feita aqui e, consequentemente, como ela estimulou, como ela virou tema, como ela se relacionou com o audiovisual brasileiro historicamente. Assim, a temática histórica sendo ‘Música Preta no Brasil’ e não ‘do Brasil’ é porque todas as músicas pretas nos interessavam de largada.
O processo de escolha curatorial dos longas foi difícil?
Teve um processo que, no CineOP, é sempre mais ou menos parecido. Mas não chamaria de difícil. A partir do momento em que temos um universo de filmes com um certo foco, iniciamos um amplo trabalho de pesquisa. A gente vai levantar filmes, vai levantar o estado de cópias. Porque, quando estamos lidando com filmes mais antigos, tem que ver se tem cópia. Por exemplo, tem uma busca por informação, em primeiro lugar. Para minha surpresa, e estou dizendo que foi uma surpresa porque se escreveu muito pouco sobre isso na literatura de cinema e de música no Brasil. Se escreveu muito pouco sobre a relação entre a música preta e o cinema. Ela existe, mas a gente precisou, realmente, levantar dados. Porque não tem pesquisas que já estejam prontas, dados que já estejam prontos ou listagens prontas. Foi tudo muito por aproximação esse levantamento de títulos, sabe? Foi pesquisa, mesmo. Sem um foco. Vamos ver se tem filme sobre fulano, vamos ver se tem artigo sobre sicrano. Eu li uma tese sobre Jorge Ben Jor para ver se conseguia encontrar informações sobre esse filme do Fernando Coni Campos, Uma Nega Chamada Tereza. Porque eu não tinha informação nenhuma sobre esse filme. Eu não conhecia o filme. Não conhecia ninguém que conhecia o filme. Liguei para várias pessoas que poderiam ter conhecido. Ninguém conhecia. Aí eu tive que ir à Cinemateca Brasileira para assistir ao filme. Ver se havia cópia disponível para, assim, saber se poderia ou não contar com essa cópia antes de fazer um convite aos detentores de direitos. Os trabalhos na CineOP têm esse processo um pouco de garimpagem. No caso da música preta, queríamos uma diversidade de música preta. Tentamos focar dentro do possível em realizadores e realizadoras pretos e pretas desses filmes. E isso, também, é muito difícil pela própria conjuntura histórica. Ao mesmo tempo, um outro dado importante não é da dificuldade do tema. Não é isso. É que essa relação da música preta com o cinema e mais especificamente com o audiovisual de uma maneira mais ampla, se intensificou recentemente. Ela não é, assim, um fenômeno cultural que chame a atenção por si próprio até os anos 2000. É quando, sobretudo com o digital, com documentários biográficos, com filmes musicais, com documentários sobre artistas da música brancos ou pretos, isso veio mais à tona. Mas se você pegar historicamente antes da década de 1950, a presença de músicos pretos na trilha sonora ou na frente das câmeras, é muito pequena. Na chanchada, isso é muito raro, por exemplo. E mesmo nos filmes que tratam de carnaval, mesmo em filmes que lidam com a favela, é uma favela branca, um carnaval branco. Os compositores que estão na trilha sonora, 90% são brancos. Então, é a partir dali do Rio Zona Norte, do Rio 40 Graus, na década de 1950, que começa a se estabelecer uma relação. É algo tímido ainda ‘É no Cinema Novo?’, as pessoas podem pensar. No nosso imaginário, pode até parecer, né? Algo como: ‘o Cinema Novo olhou para a cultura afro, para a Bahia. Deve ter surgido ali um monte de trilha sonora de pessoas pretas’. Mas não! A maior parte da trilha sonora do Cinema Novo é branca. Então, dentro dessa pesquisa, também, a gente se dá conta de que essa relação entre a música preta, que é o nosso diamante cultural, e o cinema, ela, na maior parte do tempo, foi muito tímida e reproduz a tímida presença negra na história do cinema brasileiro. E reproduz, por exemplo, antes dos anos 1950, todas as estratégias de branqueamento da sociedade. Quer dizer, no cinema, teve isso na década de 1930. Evitar filmar os pretos porque isso dava um signo de subdesenvolvimento, de pobreza. A própria primeira fase do rádio, no Brasil é muito branca. Muito sambista preto tendo seu samba cantado por cantores brancos. Às vezes nem sendo pagos. Então, quer dizer, o que a gente encontrou, na verdade, foi essa relação de uma maneira muito rara, muito escassa. E só recentemente ela está ganhando uma maior intensidade à ponto da gente se surpreender com o fato de não existir um documentário sobre o Tony Tornado.
E a escolha do Tony Tornado, um artista que se mantém ativo como um ator operário aos 93 anos, simbolizou bem essa necessidade de mudança?
Sim. Mas é curioso, por exemplo, que eu achei esse estudo sobre o Jorge Ben Jor, mas a gente se surpreende com o fato de não existir algo assim sobre o Tony Tornado. Não temos um estudo sobre o Tony Tornado. Eu não tenho onde consultar uma literatura de análise da importância do Tony Tornado para a música brasileira. E o Tony Tornado é muito complexo. Para nós, isso interessava. Mas mesmo como homenageado, ele é uma figura complexa. Porque, para nós, interessava porque ele tem esse início na música. Ele tem um percurso que é super importante. Na história do cinema, na história da música, existem alguns artistas que têm uma explosão em um determinado evento. Ele é um desses artistas por conta de BR-3, que é uma explosão no Festival da Canção em 1970. A música ganha o festival e o Tony Tornado não era conhecido ali. Ele ganha o festival e sua carreira se desdobra a partir desse momento. Seja na música, seja na televisão, que é quando ele vai estrear ali em novelas, no começo dos anos 1970. E logo depois ele estreia no cinema. Mas onde ele, de fato, teve um protagonismo, foi na música. No cinema e na televisão, não. Ele fez muitos filmes, muitas telenovelas, mas ele sempre foi coadjuvante. Na homenagem, a gente exibe um filme do Cacá Diegues, o longa em que ele faz o papel do Ganga Zumba, que é um personagem discutido, em um filme discutido. Não é um filme de aceitação fácil (N.E. Quilombo, longa de 1984). E no outro filme homenagem, é uma provocação. Porque é o filme de abertura, Baile Soul, documentário do Cavi Borges. E é uma provocação. Mas é claro que, como toda provocação curatorial, ela pode não ser percebida por ninguém. Ela só faz sentido para a curadoria. Porque, diante de muitas contradições que a gente encontrava em programar alguns filmes do Tony Tornado, ou os papéis dele eram muito pequenos ou não eram filmes que tinham a ver com a nossa temática. Diante disso, optamos por esse documentário do Cavi porque o Tony Tornado é desse ambiente. Ele é mencionado no filme como uma espécie de precursor do negócio. Claro, é um documentário de incensar a cena black carioca, musical, das danças e tudo mais. Mas dentro desse movimento, o cara é tratado como um rei lá dentro. E é esse o tratamento que a gente queria. Mesmo que ele não apareça, aqui ele é tratado como um rei. Mas aí é óbvio, pode não ser entendido. Pode ser acusado. ‘Como é que pode? Um filme de homenagem não ter o homenageado? Claro, eu sei de todas as possibilidades de recepção. Mas o que estava em jogo era justamente isso: um filme no qual o cara seja tratado no nível da importância que ele tem. E não um filme que o desabone pelo tamanho do personagem ou pela natureza do personagem.
*O jornalista viajou a convite da CineOP
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