EM SALVADOR
Angela Davis prega feminismo abolicionista e justiça sem vingança
Filósofa norte-americana participou de congresso de literatura que ocorre em espaços da UFBA
Por Bianca Carneiro e Isabela Cardoso
Pensar na união entre abolicionismo penal e feminismo como forma de garantir justiça, ao invés de recorrer ao punitivismo de penas longas e militarização da polícia, que não resolvem o problema estrutural da violência. Essa é a ideia defendida por Angela Davis para o judiciário.
Em Salvador para divulgar seu novo livro "Abolicionismo. Feminismo. Já", a filósofa norte-americana e professora emérita da Universidade da Califórnia foi o principal nome a passar pelo segundo dia do 18º Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), na manhã desta terça-feira, 11.
Ao lado das professoras Gina Dent, editora do Black Popular Culture, e de Denise Carrascosa, doutora em Crítica Literária, o debate, mediado pela professora Feibriss Cassilhas, doutora em Estudos da Tradução, teve como tema o livro de Davis e Dent. Assinam ainda a obra as professoras Erica R. Meiners e Beth E. Richie, que são referências em estudos de gênero e raça.
Davis iniciou a fala dizendo que é “maravilhoso” estar na Bahia. Na sequência, revelou que, diferente do que pensou, escrever Abolicionismo. Feminismo. Já. foi um desafio, sendo umas das obras mais difíceis de serem concebidas: “pensamos [ela e as outras autoras] que seria fácil porque somos abolicionistas e feministas, mas descobrimos que pensamos muito diferentemente. Mas o livro nos ensinou que as diferenças podem ser produtivas”, diz.
O abolicionismo penal pode ser entendido como um movimento voltado a pensar em formas diversas de resolução de conflitos que não seja o castigo, ou punições baseadas em vingança. Davis disse que poder debater o tema de forma ampla é um avanço.
“Há 30 anos, nós nunca imaginaríamos que teríamos a oportunidade de ver a abolição entrando no discurso público. Presumimos que estaríamos trabalhando em algo que influenciaria gerações, mas não imaginamos que veríamos [...] As pessoas começaram a reconhecer que o racismo não diz respeito a atitudes individuais, diz respeito a todas as estruturas dos aspectos da sociedade”, aponta.
“Às vezes, tento pensar em como as pessoas que eram escravizadas imaginavam a liberdade, porque a luta em prol da liberdade já estava lá. Nós somos as beneficiadas por pessoas que há centenas de anos imaginavam um mundo diferente e sabiam que não poderiam vivenciar esse mundo, mas lutaram para isso [...] Como eu digo frequentemente, eu acho que por isso que muitas pessoas no mundo estão atraídas pela cultura negra, porque é a cultura que promove as lutas em prol da liberdade”, completa.
Parceira da filósofa, Gina explica que o feminismo abolicionista é uma importante chave para mudanças no sistema judiciário e o rompimento de preconceitos.
“O feminismo abolicionista é um substantivo composto, nós estamos usando esse substantivo que é desenhado para romper que o trabalho abolicionista está de um lado e o trabalho feminista está em outro canto [...] As pessoas são tão antifeministas que não entendem as questões das pessoas trans, não binárias, das pessoas encarceradas. Íamos em encontros feministas que não falavam sobre mulheres encarceradas”, conta.
Dentro dessa perspectiva, Angela e Gina irão visitar, na tarde desta terça, mulheres encarceradas que produzem poesia abolicionista no Conjunto Penal Feminino do Complexo Penitenciário Lemos Brito, em Salvador. O sarau realizado pelas internas no local foi destaque na primeira edição do Prêmio Literário Abolicionista Maria Firmina dos Reis e rendeu a produção do documentário “Firminas em Fuga”, que foi exibido na Feira Literária de Paraty no ano passado e também no evento desta terça.
“A abolição e o feminismo abolicionista tem que ser internacional, temos que estabelecer conexões, não somente com respeito a pessoas negras, mas todas as pessoas que são feridas pelo sistema de capitalismo racial. Nós sabemos que o feminismo negro foca nas pessoas de descendência africana, mas é uma metodologia que nos instiga a nos responsabilizarmos pelos danos históricos pelo colonialismo e pelo capitalismo. Não haveria capitalismo se não houvesse existido o tráfico negreiro e a instituição escravocrata”, lembra Angela Davis.
Encontro de admiradores
O auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) ficou pequeno para quem queria ver Davis. Uma das presentes foi a ministra da Igualdade Racial do Brasil, Anielle Franco e a deputada estadual Olívia Santana (PCdoB), que, em entrevista exclusiva ao Portal A TARDE, se disse admiradora da ativista desde a juventude.
“A Angela é uma inspiração para todas nós mulheres negras que lutamos contra o racismo. Ela é absolutamente inspiradora, contemporânea e eterna. Desses nomes que chegam para marcar a história da humanidade, a história democrática, a história de luta num sistema de organização social que seja para todas e todos. Estar aqui nesse momento é mais uma emoção muito forte porque ela é aquilo que me inspira realmente”, afirmou.
Teve também quem veio de outros cantos do Brasil para prestigiar a norte-americana em Salvador, como as estudantes de teoria da literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Raissa e Andressa.
“A Abralic nos proporciona estar vivendo esse momento que normalmente a gente não viveria, de ter contato com essas pessoas que normalmente a gente não teria, de conseguir entender o nosso legado. Entender que o legado, ele não é necessariamente ruim, nossa história é construída o tempo todo de resistências. Acho que a Angela representa a sua resistência e ela nos dá fôlego e força para reconstruir, continuar pensando, imaginando um futuro”, afirmou Raissa Antunes, 28 anos, que faz doutorado em teoria da literatura pela PUCRS.
A possibilidade de estar próxima de Angela também foi celebrada pela jornalista e mestranda da PUCRS, Andressa Lima, 30. Ela ressaltou a chance de intercâmbio cultural entre a capital baiana e outras cidades promovido pelo evento da Abralic e destacou a representatividade trazida pelo congresso.
“É muito distante tu conhecer realmente uma pessoa que gosta assim em vida, que passou por tanta coisa também. Então, acho que a Abralic dá essa possibilidade de poder unir, de juntar pessoas de todos os países, a gente que vem de Porto Alegre para Salvador, para poder ter esse momento. E também como a gente tem pouca representatividade negra no Rio Grande do Sul, a gente vir pra cá e ter referências gigantescas para além de Angela Davis, tem a Fernanda Miranda [professora e pesquisadora das autorias negras na literatura], então eu acho que são esses momentos que a gente consegue unir pessoas de diversos lugares do mundo pra poder trocar e dialogar sobre as literaturas, principalmente literaturas negras e sobrevivências”, pontuou.
Programação
Gratuito, o congresso reuniu grandes nomes não só da literatura como da política e do ativismo social, entre eles, a escritora mineira Conceição Evaristo e a ministra Anielle Franco.
Na segunda-feira, 10, Conceição Evaristo e Anielle Franco participaram da mesa "O radical projeto estético, político e ético das mulheres negras para a invenção de um mundo comum". O debate, via conferência, foi mediado pela professora do Instituto de Letras da UFBA, a doutora em Literatura Comparada Florentina Souza.
O 18º Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic) segue até a sexta-feira, 14, das 8h30 às 21h, em diferentes espaços da UFBA. A programação completa pode ser consultada aqui.
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