LITERATURA
Berro D´Água, bar iconico dos anos 1980, é retratado em livro
Por Eugênio Afonso

Quem foi amante da noite na cidade da Bahia nos anos 1970, 80 e início dos 90, seguramente, frequentou o Berro d’Água. Um bar e restaurante criado pela dupla Charles Pereira e Jacques Frappa na famosa esquina da rua Barão de Sergy, no Porto da Barra. Por lá passaram personalidades nacionais e internacionais proeminentes naquelas décadas trepidantes da segunda metade do século passado.
Um ponto de encontro como esse não poderia – nem deveria – passar incólume. É preciso deixar registrado, sobretudo para as novas gerações, um pouco do que foi a história da noite soteropolitana naquele período. Um de seus fundadores, o itabunense Charles Mocó – como é mais conhecido por todos, decidiu então colocar suas incontáveis memórias no papel e lança, nesta quinta-feira, 25, a partir das 17 horas, no bar e restaurante Póstudo (Rio Vermelho), o livro Berro d’Água – Festa, Arte e Boemia na Cidade da Bahia.
“Como fiz muita produção para artistas, o Berro passou a ser muito frequentado por eles. E eu não quis ficar só vendendo caipirinha, então cedi as paredes do Berro para os jovens exporem seus quadros. Ali aconteceu a primeira exposição de Bel Borba, então aos 15 anos de idade. Fiz Mário Cravo Neto, ainda garoto. Comemorei o aniversário de Robert de Niro e de Michael Douglas. E tudo era noticiado pela imprensa. Por isso, o Berro fez tanto sucesso”, revela Charles.
Durante os anos em que reinou absoluto no Porto da Barra, a farra mesmo acontecia no primeiro andar da casa, mas o fervo já começava na escada do icônico bar. Como a passagem pela escada era obrigatória para chegar lá em cima, o engarrafamento de gente já iniciava ali no sobe e desce frenético dos frequentadores. E mesmo com o bar lotado, ninguém desistia e ia embora, então aquele espaço íngreme e apertado acabava sendo uma parte importante do começo da noite. Entre esfregas e flertes, essa escada presenciou muita cena.
E como, por um bom tempo, a noite da cidade aconteceu naquela esquina, nomes como Lennie Dale, Mercedes Sosa, Robert de Niro, Michael Douglas, Almodóvar, Pelé, Nina Hagen, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Luiz Melodia, Toquinho, Jorge Benjor, Dzi Croquettes, Cazuza, Marina Lima, Jô Soares, Tarso de Castro, Pierre Verger, Carlos Bastos, Mario Cravo Neto, Roland Schaffner, Glauber Rocha, Ney Galvão, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Moraes Moreira, Paulinho Boca e demais Novos Baianos, Nonato Freire, Armandinho, e tantos outros, marcaram presença no Berro, como os íntimos o chamavam.
Panorama da noite
Charles acha importante frisar que todas as histórias contadas no livro são reais, assim como os nomes dos personagens, e que o caso mais curioso foi protagonizado pelo cantor e compositor carioca Cazuza.
“Estávamos no bar e, em determinado momento, o cantor pegou o avental do garçom e passou a servir as mesas, até porque o bar era muito frequentado por amigos. Teve noites também com apresentações dos Dzi Croquettes, do Tran Chan. E teve a noite em que pedi autógrafo a Mercedes Sosa, mesmo sendo proibido pedir autógrafos no bar. Só que eu era completamente apaixonado por ela”, relata Charles.
Mas, além das histórias divertidas que aconteciam entre o balcão e as mesas do Berro, o livro registra também a importância de determinados estabelecimentos para a configuração da noite da capital baiana na segunda metade do século 20. Estão lá o Tabaris, o Maculelê, o velho Maciel, o Mirante do Belvedere da Sé, a Rua Chile, o Anjo Azul, o Zanzibar e tantos outros points onde se reuniam artistas, intelectuais, além de figuras lendárias da cidade e da boemia.
Território livre
Desde que o bar foi inaugurado, em 20 de maio de 1975, auge da contracultura, e também dos anos de chumbo da ditadura militar implementada no país desde 1964, a Barra, um bairro até então essencialmente residencial, nunca mais foi a mesma.
A história do local tomou outro rumo e o bairro começou a despontar como um dos mais descolados da província baiana. Tinha bar, restaurante, discoteca, sorveteria, casa de show e, claro, a mais bonita praia soteropolitana, o Porto. O circuito carnavalesco chegaria logo em seguida ao encerramento do bar, em 1992.
Foram 17 anos funcionando com um dos mais importantes pontos de encontro de intelectuais, escritores, jornalistas, publicitários, artistas e, sobretudo de uma frenética e fervida turma da badalada noite baiana. Tanto que, em 2019, Charles decidiu reavivar o bar em um outro ponto, mas ainda no Porto da Barra.
Nem é preciso dizer que a pandemia chegou para encerrar as atividades e Mocó se viu, mais uma vez, obrigado a fechar o bar e abrir mão de um sonho acalentado por tantos. E, desta vez, de forma definitiva, segundo o próprio Charles.
Coração da cidade
Para o empresário Paulo Vaz, dono do charmoso Cafelier, o Berro d’Água foi o maior ponto de encontro da Bahia nos anos 1980.
“É uma referência inesquecível da cidade. A gente costumava dizer que tinha que dar uma volta no bar, marcar o ponto no Berro. Eu ia toda semana. A Barra era o lugar e o Berro era como se fosse a minha casa. Marcava com os amigos lá. Não conseguia sair para outro lugar sem antes passar no Berro. Era onde tudo acontecia... o coração da cidade”, relata Vaz.
Cecé Viana, outra assídua frequentadora, concorda com Paulo e conta que, naquele tempo, o Berro era o melhor lugar de Salvador, era onde você encontrava todas as pessoas da noite. “O gostoso era rodar por ali até conseguir uma mesa. Saudade danada, não existe mais point como aquele não”, lamenta.
E num dos depoimentos do livro, o escritor Claudius Portugal diz que “no Berro se concentrava toda uma geração que, além de compartilhar vidas, promovia a liberdade de existir... estávamos num bar/restaurante que ia além do comer e beber, aonde se iam encontrar, explicitar desejos, jogar conversa fora, e outras coisas mais, como sonhar...”.
Já para Charles a definição que melhor sintetiza o Berro era a que ele dava aos jornalistas quando perguntado sobre o bar e restaurante: “Almocei com Tom Jobim e jantei com Mercedes Sosa”.
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