LITERATURA
Biografia percorre a atripulada vida de Norma Bengell

Por Adalberto Meireles | Jornalista

Se existia a vocação para mito em Norma Bengell, sua biografia lançada recentemente pela nVersos Editora não irá desfazê-la. Sobram véus caídos sobre a vida da artista, ainda que contada em detalhes os mais controvertidos. O livro também percorre a trajetória social e política brasileira do tempo de La Bengell sem, entretanto, demonstrar o mínimo interesse em fazê-lo de uma forma mais aprofundada.
Norma Aparecida Almeida Pinto Guimarães d'Aurea Bengell nasceu em 21 de fevereiro de 1935, em pleno domingo de carnaval. E morreu sozinha em 9 de outubro de 2013, depois de passar por inúmeros problemas de saúde agravados sobretudo com a acusação de se apoderar de verbas captadas para seu filme O Guarani (1996). Teve uma infância difícil, no bairro de Copacabana, filha de pai belga com uma garota de família rica deserdada pelo chefe de família integralista que não a queria casada com um imigrante.
Ao seu velório compareceram apenas cerca de 15 pessoas. Na época, o produtor de cinema Luiz Carlos Barreto, entre os poucos que foram se despedir da atriz, e hoje escreve o prefácio da biografia organizada pela produtora Chistina Caneca, protestou pela falta, evocando a inocência da atriz, envolta em problemas com o Tribunal de Contas da União: "Era uma artista, não entendia dessa burocracia toda", disse.
"O texto de Norma não é apenas a narrativa das aventuras artísticas de uma menina que conseguiu furar a barreira do anonimato e saltar o muro enganoso da fama: é uma narrativa cheia de lances humanos e, poderíamos chamar, de saudável caldo humanista, onde a emoção e os sentimentos mais profundos da alma estão à flor da pele", escreve Barreto.
Christina Caneca teve o trabalho de resgatar a história viajando no acervo da artista e acabou encontrando os originais, cujas "páginas datilografadas há mais de vinte anos estavam se deteriorando e totalmente fora da sua ordem cronológica", afirma a produtora na apresentação do livro. "Todo o processo de organização, digitalização e a revisão foi um trabalho árduo, como montar um quebra-cabeça".
Norma Bengell, simplesmente, é o nome da biografia. A atriz descreve sua infância, longe de um "carrossel", como uma "montanha russa", e mergulha na vida da menina que de fato teve pouca chance de desfrutar do sabor da infância. "Entrei, então, no Ginásio Brasileiro, com meu único par de sapatos, amarelos, de baile. Fui barrada no primeiro dia de aula. O diretor exigia sapatos pretos. Pintei-os e resolvi o problema", escreve, ilustrando à perfeição isso de ingenuidade perdida.
A partir de então é porrada pura. Histórias de abortos, estupros, uma trajetória pontuada por inúmeros casos de amor, brigas, separações, a paixão por uma mulher com quem ela viveu durante anos, o tumultuado relacionamento com Alain Delon, na época considerado o homem mais bonito do mundo, enquanto ela filmava em Palermo, na Itália, O Mafioso (1962), de Alberto Lattuada, e ele O Leopardo (1963), de Luchino Visconti.
Inquieta, despachada, ousada, libertária, como ela mesmo se define, Bengell fez novelas de televisão, foi amiga do presidente João Goulart e de Glauber Rocha, com quem trabalhou em A Idade da Terra (1980). Casos de amor e outras brigas se alternam na vida da sedutora atriz e cantora que lançou dois discos e se engajou na luta pelos direitos dos atores, foi feminista e uma voz contra a ditadura militar, passando anos de exílio na Europa.
Primeiro nu frontal
Aliás, por falar em Visconti, Bengell quase se tornou uma estrela do staf do diretor de Vagas Estrelas da Ursa (1965). Trabalhou com inúmeros diretores europeus e se casou com o ator Gabriele Tinti, com quem filmou Noite Vazia (1964), de Walter Hugo Khouri, ao lado de Odete Lara e Mário Benvenutti, e coroou uma carreira que vinha de títulos como O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, e Os Cafajestes (1962), de Ruy Guerra, com Jece Valadão, no qual protagonizou a primeira cena de nu frontal no cinema brasileiro.
O filme se tornou um marco. Proibido pela censura, foi uma espécie de cartão de visitas para a carreira internacional da atriz, que começou a se popularizar ainda nos anos 50, quando ingressou no teatro de revista do rei da noite, Carlos Machado, e passou uma estação de aprendizado como modelo de loja feminina da Zona Sul carioca, até ser chamada por Carlos Manga para fazer O Homem de Sputnik (1959), em que protagonizou a célebre sequência em que imita Bigitte Bardot.
A atriz teve uma vida que não foi um "mar de rosas", só para citar o filme de Ana Carolina (1977) que fez quando voltou do exílio, com Cristina Pereira e Hugo Carvana, e sobre o qual ela fala com tanto carinho. No papel de uma mãe em desesperada trajetória em direção ao Rio de Janeiro, com a filha como num surto, uma explosão, um delírio, o filme é bem ilustrativo dela mesma, de sua trajetória, inclassificável Norma Bengell.
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