Entrevista com Gonçalo Jr.: A Guerra Continua | A TARDE
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Entrevista com Gonçalo Jr.: A Guerra Continua

Publicado domingo, 07 de abril de 2013 às 20:00 h | Atualizado em 07/04/2013, 22:11 | Autor: Chico Castro
Gonçalo Júnior
Gonçalo Júnior -

No fim de mais uma tarde quente em Salvador, Gonçalo Júnior se deita e se espreguiça sobre a plataforma que fica no alto da escadaria da Biblioteca Central dos Barris. É visível que ali é um dos lugares em que se sente mais em casa em Salvador. Residente em São Paulo desde 1997, Gonçalo veio a Salvador para participar do I Festival de Ilustração e Literatura da Bahia, onde integrou mesa-redonda e lançou dois de seus livros mais recentes: A Morte do Grilo,  sobre a revista de humor underground setentista, e Natureza Humana, graphic novel muda, assinada com o desenhista Nestablo Ramos. Autor de 23 livros, entre títulos antológicos como A Guerra dos Gibis (2001), O País da TV (2001), O Homem-Abril (2005) e Maria Erótica & O Clamor do Sexo (2010), Gonçalo rasga o verbo nesta entrevista. Entre outros assuntos, fala da sua biografia do compositor santo-amarense Assis Valente, emperrada na editora por sugestões de cortes do departamento jurídico, anuncia livro sobre "relações promíscuas" entre artistas e políticos baianos e conta sobre os perrengues que passou com plagiadores de sua obra e o Prêmio Jabuti 2011, que ele ganhou e depois perdeu. Saiba ainda o que ele acha do estado da Salvador atual.
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Curtiu o Festival de Ilustração e Literatura? O que achou?

Gonçalo Júnior: Achei genial a iniciativa. As pessoas por trás dela são sérias, engajadas com a ilustração, a prosa, a poesia. A Bahia tem uma tradição gráfica forte e pouco mapeada. A única pessoa que eu sei que se preocupou com isto foi o (jornalista) Gutemberg Cruz. Fui atrás disso por conta do livro que concluí recentemente, uma biografia do (compositor santo-amarense) Assis Valente (1911-1958). Ele começou aqui na Bahia como cartunista. Desenhou na revista erótica Shimmy, que circulou de 1927 a 1936 e contava com grandes nomes, como Renato Silva e Alvarus. Quando se mudou para o Rio (em 1927), ele já era cartunista formado. Seria impossível ele ter apresentado o trabalho que apresentou lá sem antes ter sido publicado aqui na Bahia. Aqui ele assinava só como "Assis", tipo uma rubrica. Encontrei dois cartuns dele em uma revista baiana. A partir disso, fui atras do humor gráfico baiano desde 1800 e tantos.

E a biografia do Assis Valente? Quando sai?

GJ: Já escrevi a biografia dele. O livro está emperrado porque o departamento jurídico da editora, a Civilização Brasileira, recomendou cortar a parte em que abordo o consumo de drogas de astros do rádio como Orlando Silva (1915-1978) e Nelson Gonçalves (1919-1998), fato que teve consequências no trabalho de Assis. Cortar essas partes inviabilizaria a obra. Aí criou-se um impasse. Pedi para a editora cancelar o contrato por causa dessa indicação de corte. Espero que eu não precise ter de esperar a regulamentação da lei das biografias (aprovada semana passada no Congresso Nacional) para poder publicá-lo.

O que você pode adiantar sobre o livro?

GJ: Há todo um contexto de submundo da MPB no qual Assis estava envolvido. Os cortes mutilariam a obra, que tem 640 páginas. Estou à espera do parecer da editora. Não aceito tirar nem uma linha dos trechos que eles sugeriram. Seria como escrever sobre (o escritor) José Lins do Rego (1901-1957) e omitir que ele, ainda criança, matou um garoto (supostamente, em um acidente com a arma do pai). Foram 25 meses de trabalho ininterrupto em um livro carregado de revelações. Essa biblioteca aqui (aponta para a Biblioteca Central dos Barris) é uma fonte inestimável de pesquisa para mim. Tem um dos melhores e mais conservados acervos do Brasil. Mais conservado do que o acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Aliás, aqui e no Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (IGHB). Tenho também um livro inacabado sobre a relação promíscua entre os artistas baianos e o carlismo. Tirei o título de uma faixa que vi uma vez na Mudança do Garcia: Tropicarlismo: Cultura, Poder e Promiscuidade na Bahia dos Anos 90. Será uma radiografia dessa coisa maléfica que controla o Carnaval da Bahia. Essa gangue aí que acabou com os blocos afro, os blocos de índio. Acabaram com o Carnaval baiano fora dos circuitos. Um exemplo bem claro pra mim é o bairro onde nasci, o Tororó, que na minha infância ficava todo decorado e iluminado. O Tororó sempre foi um bairro muito carnavalesco, inclusive de lá veio o bloco dos Apaches do Tororó. Acabou tudo.

A Guerra dos Gibis é uma trilogia, né? Sobre o que exatamente é essa trilogia?

GJ: Me irrito quando dizem que sou especialista em gibis. O livro Guerra dos Gibis usa a história de editoras de quadrinhos como pano de fundo para contar a história da imprensa no Brasil. Na verdade, o Guerra dos Gibis serviu para contar a história de Roberto Marinho (fundador das Organizações Globo) e Adolpho Aizen (1907-1991, imigrante russo - fato revelado pelo próprio Gonçalo -, fundador da Editora Brasil-América, a Ebal). Tá saindo por esses dias também um coffee table book chamado Um Mundo de Impressões - 60 Anos da Editora Globo. Pude mergulhar nos arquivos dos Marinho, com total liberdade para fazer o trabalho. Na verdade, os livros que escrevo são sobre três coisas: 1: contar a história da imprensa no Brasil. 2: censura e repressão. 3: sempre parto de personagens marginais para falar de fatos e momentos importantes da história do Brasil. Por exemplo, o livro Maria Erótica & O Clamor do Sexo é sobre dois editores pequenos de revistas eróticas (Minami Keizi e Cláudio Seto) que foram presos e torturados. Mas a ditadura foi derrotada pelo sexo. A censura começou mesmo depois da entrevista histórica da Leila Diniz ao Pasquim. Em cinco anos, a ditadura censurou 500 livros, o que é um absurdo. O sexo começou a ser liberado com a liberação do nu frontal em 1980. E com a liberação da pornografia, a partir de 1982. Aqueles militares eram muito idiotas. Parece que viviam em transe, assim como a Bahia. A Bahia parece estar sempre em transe. Na política então, não dá nem pra acreditar. Nunca, nunca mesmo, confiei em nenhum político baiano. Especialmente os de esquerda. Costumo dizer que estou sempre à esquerda deles.

Tem um outro livro que você acusou de ser um plágio da Guerra dos Gibis (Ezequiel Azevedo teria copiado trechos inteiros de A Guerra dos Gibis em seu livro Ebal: Fábrica de Quadrinhos - Guia de Colecionador). Você processou o autor? Como ficou essa história?

GJ: Ficou que virei o vilão da história. Vários canalhas de internet me esculhambaram por aí. Dizem que não sou dono do assunto. Assunto que, diga-se de passagem, estava enterrado em arquivos e eu fui lá desenterrar. Esse sujeito plagiou dois capítulos do meu livro. Mas parei de fazer isso, de ler esses sites, blogs e revistas. Eles pegam seu livro, copiam e não creditam as informações, não citam as fontes. Aprendi a lidar com isso. Não leio mais os sites de quadrinhos. Essa turma aí, alguns jornalistas e caras que acham que são entendidos do assunto, eles são muito mesquinhos. Veja só: vou lançar uma graphic novel sem diálogos, chamada Natureza Humana. Aí um garoto aí escreveu a seguinte pérola: "O livro deveria custar mais barato por que não tem balão de falas". Chamei a atenção dele: "Você tem certeza do que está dizendo? Você acha que os filmes do Charles Chaplin deveriam custar menos também? Por que eles também são mudos". O garoto respondeu que eu o estava censurando. Aí nem respondi mais, abstraí.

Você já tinha escrito outras graphic novels mudas. Por que essa predileção?

GJ: Essa é minha terceira graphic novel muda, depois de Claustrofobia e O Messias. Sempre gostei de Pinduca, que é quadrinho mudo também, mas arrisco dizer que minha maior influência é O Encouraçado Potemkin, do Serguei Einsenstein. É um filme mudo de quase 100 anos que me parece novo até hoje.

Na primeira vez que te entrevistei para o jornal A TARDE, em janeiro de 2008, você malhou de forma bem dura os quadrinhos brasileiros. Cito: "Senta-se na pedra para chorar a invasão americana, mas não se tem a humildade de se fazer uma autocrítica, de se buscar uma produção brasileira competitiva, de qualidade. A história da HQ nacional é uma história de arrogância e incompetência". Você ainda pensa assim? Algo mudou?

GJ: De lá pra cá mudou. Primeiro, muita gente que tentou ser desenhista para a Marvel e a DC não conseguiu se firmar e virou quadrinista autoral. O que aconteceu foi que esses caras que não conseguiram tomaram consciência de que o trabalho deles tem que ser competitivo. Ser competitivo significa ter bons roteiros. Eu sempre desafiei me apontarem dez grandes HQs brasileiras. Não tem. Mas hoje, para mim, Gustavo Duarte e Lourenço Mutarelli são os melhores. E hoje, ninguém precisa mais de editor. Até porque o mercado editorial é cheio de picaretas. Já publiquei 23 livros por umas 13 editoras. Por que tantas? Porque meus livros não vendem. Aí eles não querem lançar outros. Meu best-seller é a Enciclopédia de Monstros, pela Ediouro, que vendeu uns oito mil exemplares. Apesar de já ter passado por tantas editoras, me dou bem a maioria. Menos, justamente, com a Ediouro, por questão de royalties. Os caras (editores) não apostam muito. E o Homem-Abril foi boicotado pela imprensa porque conta os bastidores da Editora Abril.

E os quadrinhos brasileiros no exterior? Estamos entrando em outro nível agora, com quadrinistas escritores ganhando espaço, depois do Daytripper, dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá?

GJ: Tem caras como o André Diniz (Morro da Favela), que tá chegando forte na Europa. Caras como ele perceberam que é possível, mas os editores trabalham como se estivessem fazendo um favor. O que é mentira. Eles nunca perderam dinheiro.

Você é daqui, mas foi trabalhar em SP. O que te levou a ir embora?

GJ: O mercado de trabalho pesa bastante. Mas o que me puxou para lá mesmo foram os livros, o jornalismo investigativo livre. Porque fui censurado algumas vezes na Gazeta Mercantil. Aquele jornal era muito pró-FHC. Então, matérias que fossem contra eram censuradas. Agora tenho brincado de fazer comentários para a Educadora FM daqui de Salvador. São três minutinhos, só. Ainda me sinto um pouco estranho, mas daqui a pouco eu pego o jeito.

Pelo volume de sua produção, a impressão que dá é que você só deve dormir umas duas horas por dia.

GJ: Ano passado foram cinco livros, mas em 2011, não lancei nenhum. Em 2010, lancei um. Em 2009, nenhum. Tem gargalos editorais que me deixam à mercê das editoras. Os livros muitas vezes estão prontos. Meu primeiro livro saiu em 2001. De lá para cá, foram 23, o que dá uma média de dois livros por ano. Quase tudo fruto das pesquisas que realizei entre 1993 e 2001. O Guerra dos Gibis 1 e 2 (Maria Erótica & O Clamor do Sexo) saíram do meu Trabalho de Conclusão de Curso na Facom (Ufba). Tinha 900 páginas, e aliás, foi roubado de lá. Alguém pegou e não devolveu mais. Estavam lá, praticamente na íntegra, o Guerra e o Maria Erótica. Já o livro O País da TV foi uma reunião de entrevistas que fiz para a Gazeta Mercantil. O Guerra dos Gibis levou 27 nãos antes de ser publicado. Dois vieram da mesma editora. Eu costumava deixar as páginas levemente coladas, para saber se o livro tinha sido de fato lido. Quando voltava, as páginas continuavam coladas. Nem se deram ao trabalho de ler! Eles não são editores. São comerciantes de livros. Vão atrás do que está vendendo no momento, como essa onda de erotismo barato (50 Tons de Cinza e similares).

Salvador está melhor ou pior? Como você, que mora fora, vê Salvador hoje?

GJ: É muito triste ver o estado em que se encontra meu antigo habitat, que ia ali do Campo Grande até Nazaré. É uma tristeza perceber que, em quinze anos, a decadência ficou tão visível. Salvador vive no mais puro e completo abandono do poder público. Às dez da noite as ruas estão desertas. É assustador. É muita sujeira, é a decadência do comércio de rua. A população está empobrecida por falta de coisas básicas, como limpeza urbana. Mas o que mais me espanta é ver como conseguiram construir um estádio em três anos e não conseguem fazer um metrô em treze. Salvador está apática, à mercê da escória da política - e eu gostaria que você usasse exatamente este termo: "escória". O que havia de pior na política baiana está hoje no topo. Você vai ali na praça do Fórum de Nazaré e vê os tapumes da obra do metrô apodrecendo. Aí a pergunta que fica é a seguinte: cadê o Ministério Público? Tem MP na Bahia? Acho que esse metrô só vai pra rua quando alguém for pra cadeia. Cadê a Bahia que ia para as ruas reivindicar seus direitos, como fazia até alguns anos atrás? Nos anos 1980, o povo, os estudantes, iam para a rua exigir seus direitos. Isso não é saudosismo, mas uma urgência. Uma necessidade. E o que é aquilo que fizeram atrás do Palácio Arquiepiscopal (o edifício Morada dos Cardeais)? Aquilo ali é a prova de que, na Bahia, o dinheiro compra tudo. Até a dignidade da Igreja Católica. Já o axé fez 30 anos com a música do Chiclete com Banana (O Mistério das Estrelas) e há 30 anos é essa mesmice, não muda nada nunca, é só essa máquina de ganhar dinheiro. O Carnaval virou festa de branco. O Tororó é outro exemplo claro disso tudo: o Carnaval do bairro desapareceu. Houve também uma invasão suspeita, que aterrou a fonte de que falava aquela cantiga de roda. E ninguém nunca fez nada. Essas são algumas coisas que quando você vai morar fora, acaba vendo melhor.

Em 2011, você ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria Melhor Biografia, com o livro Alceu Penna e As Garotas do Brasil. Dois dias depois, o Jabuti veio a público revogar sua premiação. O que aconteceu?

GJ: Fiz uma versão fanzine da biografia do Alceu Penna em 2004. Tinha 140 páginas e foram rodadas apenas 300 cópias. Aí, em 2010, a editora Manole lançou minha versão ampliada desta biografia, um livro com 182 páginas a mais do que aquele fanzine. Ou seja, era um outro livro. O que aconteceu foi que algum desafeto mandou uma mensagem para uma repórter de um grande jornal, denunciando que eu estava infringindo as regras do Jabuti. Resultado: o Jabuti desclassificou o livro, por critérios bastante questionáveis. Mas o único parágrafo do regulamento do Jabuti que trata sobre ineditismo é muito vago. O que caracteriza um livro inédito? No meu caso, o livro foi totalmente reescrito. Algum desafeto manda e-mails para um jornal, o jornal cobrou do Jabuti e o Jabuti retirou meu prêmio. Eu sou o único escritor, em 54 anos de Jabuti, que ganhou e depois perdeu o Prêmio. Uma meia dúzia de advogados me sugeriu entrar com uma queixa contra o Jabuti por danos morais. O chato é que me foi negado o direito de defesa. Houve uma reunião de dez minutos com a comissão do Jabuti e foi só. O jabuti estava desgastado com a imprensa, depois do caso do Chico Buarque. Aí começaram os boatos de que foi campanha de outras editoras e tal. O que eu acho é que faltou honestidade da jornalista. Ela não leu os dois livros. E isso foi alardeado depois por toda a imprensa e o pior foi que nenhum órgão me procurou para ouvir o meu lado. As exceções foram a revista Brasileiro e a Revista da ABI. Esta última publicou uma carta minha. O fato foi dado como consumado, com uma nuvem de desconfiança pairando principalmente contra a editora, como se ela tivesse tentado ludibriar o Jabuti.

Não há critica de HQ no Brasil, você disse uma vez. Por que?

GJ: Panelinha, né? O site Universo HQ tem um espaço respeitável para resenhas profissionais de quadrinhos, mas o que predomina é blog de fã. Na mídia impressa, revistas como Playboy, VIP e Rolling Stone tem boas seções de HQ.

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