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Hoje faz 40 anos da morte da escritora Clarice Lispector

Publicado sábado, 09 de dezembro de 2017 às 10:56 h | Atualizado em 09/12/2017, 10:59 | Autor: Marlon Matos | Especial para A TARDE
Escritora chegou ao Nordeste brasileiro com meses de vida
Escritora chegou ao Nordeste brasileiro com meses de vida -

A morte foi em 9 de dezembro de 1977. Um dia antes dela completar 57 anos. No mesmo ano em que lançou seu derradeiro trabalho, a novela A Hora da Estrela, trazendo a emblemática personagem Macabéa, a anti-heroína carregada do pensamento transgressor, feminino e mobilizador, de uma das escritoras mais importantes que o mundo conheceu no século XX. 

Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, em 1920, como atesta um dos seus principais biógrafos, o judeu estadunidense Benjamin Moser, chegando ao Nordeste brasileiro com meses de vida. Daí, começou a saga clariceana pelo pertencimento: pertencer a Deus na coloratura judia e católica, pertencer a seus pais, a mãe, principalmente, que morreu vítima de sífilis ocasionada por estupro nos conflitos da guerra na região eslava e que empurrou toda a família para o Brasil. Pertencer ao Brasil como qualquer outro brasileiro, sem a pecha distintiva da condição de estrangeira que ela combateu toda vida.

Pertencer a este país e à língua portuguesa funcionou para a autora de Água Viva (1973) como questão literária, filosófica, socioantropológica, mas, acima de tudo, como uma questão de vida e de política. Ela é a mais intrigante das escritoras brasileiras. A mais estudada no Brasil e no mundo, adulterada pelas Redes Sociais, com frases que não escreveu... De escritora hermética e erudita, tornou-se um fenômeno pop sendo muito “citada”, mas ainda pouco lida.

...Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei. Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo que é meu e confiaria o futuro ao futuro. "Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido.

Clarice é um desordenamento imorredouro. Um monólogo que espelha a alma de qualquer vivente no mundo. A cortante palavra que enseja a relação humana entre si e com os não humanos, como falam hoje os modernos antropólogos. Detentora de uma literatura que, assim como Lima Barreto, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Jorge Amado, traduz um pensamento social, o que Clarice escreveu nos serve como filosofia, como uma antropologia da mulher que sofre as delícias e as dores de viver numa sociedade tão machista que beira, muitas vezes, a misoginia. 

A memória brasileira precisa da literatura desta mulher que percorreu, como qualquer um de nós, uma existência de muito sofrimento, afetações psíquicas, eclipsada pela ideia de ter sido durante anos a mulher de um diplomata, uma intelectual reluzente, famosa e adorada como escritora, por muitos. Sua história deve ser conhecida para dimensionarmos o quanto a construção de um mito esconde os descaminhos de uma mulher, que muitas vezes, o que mais quis foi ser amada, acolhida, e sentir a alegria que a recorrente depressão não deixava.

Sua máxima: “Que eu não esqueça que a subida mais escarpada e mais à mercê dos ventos, é sorrir de alegria". Nesses dizeres ela reza por si, sabendo que a arma mais poderosa para se manter vivo e saudável é a alegria... Sem intelecções banais, como disse o poeta Drummond: “Era Clarice bulindo no fundo mais fundo, onde a palavra parece encontrar sua razão de ser, e retratar o homem.” 

E ela retratou o ser  humano com a coragem de quem dói e quer alívio. De quem se sabe grande, mas sem sentido frente ao mar do Leme (RJ), à espera do amor ou da inspiração que a fazia renascer quando havia a escrita de um livro.

Na missiva Água Viva, ela escreve: “A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio”.

 Quando a música faz silêncio a arte se ultrapassa. Quando um texto literário nos cala profundo, a alma viaja a lugares que aqui também deve ser entendido como silêncio. O salvador. O que imprime uma parada no ritmo da vida, para depois nos fazer pensar em cálculos e antropologias, como deseja o estar vivo e em companhias. A translúcida revelação a qual, ela como autora, não se permitia.

Ela está viva! Basta o conto Felicidade Clandestina para se ter o tom da escritura clariceana que traduz o mundo, por vezes, produzindo as tais teorias que movimentam o saber científico. Quanto a sua missão, ela ensina: “ Escrevo simplesmente. Como quem vive. Por isso todas as vezes que fui tentada a deixar de escrever, não consegui. Não tenho vocação para o suicídio. Um jornalista me perguntou: Por que é que você escreve? Então eu lhe perguntei: Por que você bebe água? A honestidade é muitas vezes uma dor”.

Ela está viva e se desdobra em muitas outras artes: a doutora honoris causa (Ufba) Maria Bethânia, em sua trajetória como cantora, ajudou a popularizar o texto da escritora. Dos momentos mais lindos, na voz de Bethânia, a eternidade de Clarice: “ Depois de uma tarde de quem sou eu. E acordar à uma hora da madrugada em desespero – eis que às três horas da madrugada eu acordei e me encontrei. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. Simplesmente isso. Eu sou eu e você é você. É lindo, é vasto e vai durar. Olha pra mim e me ama. Não, tu olhas pra ti e te amas. É o que está certo”.

O mistério Clarice Lispector está ao alcance de nossas mãos e vai durar para sempre!

Marlon Marcos é poeta, jornalista, antropólogo, historiador e professor adjunto da Unilab.

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