Hoje faz 40 anos da morte da escritora Clarice Lispector
A morte foi em 9 de dezembro de 1977. Um dia antes dela completar 57 anos. No mesmo ano em que lançou seu derradeiro trabalho, a novela A Hora da Estrela, trazendo a emblemática personagem Macabéa, a anti-heroína carregada do pensamento transgressor, feminino e mobilizador, de uma das escritoras mais importantes que o mundo conheceu no século XX.
Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, em 1920, como atesta um dos seus principais biógrafos, o judeu estadunidense Benjamin Moser, chegando ao Nordeste brasileiro com meses de vida. Daí, começou a saga clariceana pelo pertencimento: pertencer a Deus na coloratura judia e católica, pertencer a seus pais, a mãe, principalmente, que morreu vítima de sífilis ocasionada por estupro nos conflitos da guerra na região eslava e que empurrou toda a família para o Brasil. Pertencer ao Brasil como qualquer outro brasileiro, sem a pecha distintiva da condição de estrangeira que ela combateu toda vida.
Pertencer a este país e à língua portuguesa funcionou para a autora de Água Viva (1973) como questão literária, filosófica, socioantropológica, mas, acima de tudo, como uma questão de vida e de política. Ela é a mais intrigante das escritoras brasileiras. A mais estudada no Brasil e no mundo, adulterada pelas Redes Sociais, com frases que não escreveu... De escritora hermética e erudita, tornou-se um fenômeno pop sendo muito “citada”, mas ainda pouco lida.
Clarice é um desordenamento imorredouro. Um monólogo que espelha a alma de qualquer vivente no mundo. A cortante palavra que enseja a relação humana entre si e com os não humanos, como falam hoje os modernos antropólogos. Detentora de uma literatura que, assim como Lima Barreto, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Jorge Amado, traduz um pensamento social, o que Clarice escreveu nos serve como filosofia, como uma antropologia da mulher que sofre as delícias e as dores de viver numa sociedade tão machista que beira, muitas vezes, a misoginia.
A memória brasileira precisa da literatura desta mulher que percorreu, como qualquer um de nós, uma existência de muito sofrimento, afetações psíquicas, eclipsada pela ideia de ter sido durante anos a mulher de um diplomata, uma intelectual reluzente, famosa e adorada como escritora, por muitos. Sua história deve ser conhecida para dimensionarmos o quanto a construção de um mito esconde os descaminhos de uma mulher, que muitas vezes, o que mais quis foi ser amada, acolhida, e sentir a alegria que a recorrente depressão não deixava.
Sua máxima: “Que eu não esqueça que a subida mais escarpada e mais à mercê dos ventos, é sorrir de alegria". Nesses dizeres ela reza por si, sabendo que a arma mais poderosa para se manter vivo e saudável é a alegria... Sem intelecções banais, como disse o poeta Drummond: “Era Clarice bulindo no fundo mais fundo, onde a palavra parece encontrar sua razão de ser, e retratar o homem.”
E ela retratou o ser humano com a coragem de quem dói e quer alívio. De quem se sabe grande, mas sem sentido frente ao mar do Leme (RJ), à espera do amor ou da inspiração que a fazia renascer quando havia a escrita de um livro.
Na missiva Água Viva, ela escreve: “A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio”.
Quando a música faz silêncio a arte se ultrapassa. Quando um texto literário nos cala profundo, a alma viaja a lugares que aqui também deve ser entendido como silêncio. O salvador. O que imprime uma parada no ritmo da vida, para depois nos fazer pensar em cálculos e antropologias, como deseja o estar vivo e em companhias. A translúcida revelação a qual, ela como autora, não se permitia.
Ela está viva! Basta o conto Felicidade Clandestina para se ter o tom da escritura clariceana que traduz o mundo, por vezes, produzindo as tais teorias que movimentam o saber científico. Quanto a sua missão, ela ensina: “ Escrevo simplesmente. Como quem vive. Por isso todas as vezes que fui tentada a deixar de escrever, não consegui. Não tenho vocação para o suicídio. Um jornalista me perguntou: Por que é que você escreve? Então eu lhe perguntei: Por que você bebe água? A honestidade é muitas vezes uma dor”.
Ela está viva e se desdobra em muitas outras artes: a doutora honoris causa (Ufba) Maria Bethânia, em sua trajetória como cantora, ajudou a popularizar o texto da escritora. Dos momentos mais lindos, na voz de Bethânia, a eternidade de Clarice: “ Depois de uma tarde de quem sou eu. E acordar à uma hora da madrugada em desespero – eis que às três horas da madrugada eu acordei e me encontrei. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. Simplesmente isso. Eu sou eu e você é você. É lindo, é vasto e vai durar. Olha pra mim e me ama. Não, tu olhas pra ti e te amas. É o que está certo”.
O mistério Clarice Lispector está ao alcance de nossas mãos e vai durar para sempre!
Marlon Marcos é poeta, jornalista, antropólogo, historiador e professor adjunto da Unilab.