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Marcello Quintanilha volta com 'Escuta, Formosa Márcia'

Márcia, Jaqueline e Aluísio são protagonistas da nova HQ de Quintanilha, o cronista do povão

Publicado segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022 às 06:00 h | Autor: Chico Castro Jr.
Envolvida até o pescoço com os traficantes que dominam a comunidade, Jaqueline corre ao se deparar com os 'home'
Envolvida até o pescoço com os traficantes que dominam a comunidade, Jaqueline corre ao se deparar com os 'home' -

Márcia Regina é enfermeira em um hospital público no Rio de Janeiro. Vive em uma comunidade dominada pelo tráfico, onde mora com a filha Jaqueline e o companheiro, Aluísio, mestre de obras. Márcia e Aluísio se entendem bem. Quem tira o sossego da trabalhadora mesmo é Jaqueline, uma jovem indócil e sem respeito pela mãe e pelo padrasto, e que parece ter cada vez mais intimidade com os traficantes do morro.

Márcia, Jaqueline e Aluísio são os personagens principais do novo romance gráfico de Marcello Quintanilha, possivelmente o mais arguto cronista do povão na história dos quadrinhos brasileiros.

O título, Escuta, Formosa Márcia, foi tirado de uma modinha do século 19, com a qual que a protagonista literalmente tropeça ao pisar em um CD (Modinhas Imperiais) esquecido no chão do apartamento de uma senhora com Alzheimer, para quem ela também trabalha como cuidadora.

Tocada pela melodia delicada e pela letra apaixonada que cita seu nome, Márcia é re-arrebatada de paixão pelo seu companheiro, com quem faz amor imediatamente ao voltar para casa do trabalho.

A sequência, de uma beleza evidente, traz em si uma espécie de resumo da HQ de Quintanilha: em uma cidade dominada pelo crime, somente a arte e o amor uns pelos outros podem ser capazes de nos redimir.

Mas porque modinha, um gênero ancestral da música brasileira? Por email, Marcello Quintanilha afirma que “Trata-se de reivindicar a apropriação das expressões culturais por parte de todas as camadas da sociedade, pulverizando a barreira da erudição, processo cujo legado histórico foi a construção da música popular brasileira – notavelmente, o samba, o choro, e tantas outras que nos arrebatam até hoje”.

Autor de HQs premiadas no Brasil e na Europa como Tungstênio (2014, prêmios Angoulême e Rudolph Dirks, com adaptação cinematográfica filmada em Salvador), Hinário Nacional (2016, prêmio Jabuti) e Luzes de Niterói (2019), Quintanilha traz em Márcia o que sabe fazer de melhor: dramas humanos profundamente brasileiros, uma crônica do dia a dia do povo pé no chão.

Márcia é a história da luta de uma mãe para salvar a filha – da vida no crime e ainda mais, de si mesma. Mas também é a história de amor de Márcia e Aluísio, é a redenção (ou não) de Jaqueline, é o dia a dia no morro, entre traficantes folgados e policiais corruptos.

Tudo feito com a maestria do artista, que afirma evitar estereótipos: “Tenho extremo cuidado em definir minhas histórias como representações conceituais de estratos sociais, sob o risco de que isso nos conduza a generalizações com as quais posso estar em total desacordo”, diz.

Mestre em reproduzir a fala popular com seus diálogos muito vivazes, fica a curiosidade: como seria uma HQ do Quintanilha protagonizada por membros da chamada “elite” brasileira? Pelo jeito, nem ele sabe – ainda: “As relações humanas me interessam enormemente. Todas as portas estão abertas, portanto”.

28 cores

Há dois outros fatores que chamam muito a atenção em Márcia. O primeiro é o estilo da arte. Diferente dos traços mais grossos e bem definidos de toda a sua obra anterior, aqui às vezes quase não há contorno nos cenários, corpos e roupas dos personagens: este se dá pelas cores. “Trata-se do meu primeiro álbum totalmente digital”, conta Marcello.

“Trabalhei com uma paleta limitada de apenas 28 cores, que não correspondem a seus equivalentes no mundo real, como forma de metaforizar a sucessiva desconexão com a realidade, tão presente nos dias atuais, e cujos tons frios ou quentes tendem sempre à acidez. A linha preta é mínima, quase uma concessão, de modo a fazer com que as cores explodam nos enquadramentos”, detalha o artista.

Ele acrescenta que não se trata de uma transição em seu estilo de desenho – antes, foi uma decisão pontual: “As histórias decidem a forma em que serão desenhadas. Trabalho para encontrar uma dimensão formal que melhor traduza isso em quadrinhos”, afirma.

O outro aspecto que chama atenção em Márcia são as protagonistas em si: diferentes das HQs convencionais, Márcia e Jaqueline não são brancas, altas e de corpo atlético. São mulheres negras, da periferia e gordas. Ou seja, tudo o que não costumamos ver muito em papéis de – justamente – protagonismo. “Quando comecei minha carreira no final dos anos 1980 e começo dos anos 1990, era estarrecedora a parca representação de fenótipos, ambientes, usos e costumes que correspondessem aos parâmetros brasileiros, seja do ponto de vista da fabulação, seja de um aspecto sociológico. Essa foi uma das grandes barreiras enfrentadas pelo meu trabalho naquele período, porque eu não pretendia me adequar aos moldes estabelecidos pelas diretrizes editoriais de então”, conta.

“Meus personagens não se inserem em categorias facilmente identificáveis, porque são a expressão mais honesta da complexidade do ser humano que consigo produzir. Portanto, mais do que naturalmente, eu deveria dizer que tudo ocorre visceralmente”, conclui Quintanilha.

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