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HQ

O fio da memória

Em duas obras esplêndidas, a maestria do artista espanhol Paco Roca

Por Chico Castro Jr.

06/09/2023 - 0:30 h
Capa da HQ "Acasos do Destino"
Capa da HQ "Acasos do Destino" -

O que somos sem memória? Não teríamos sequer como saber, já que não teríamos... memória. Essa faculdade mental, essencial para a saúde, é ainda mais importante no sentido macro, para todos os povos, os países e a própria humanidade. Na Europa, um talentoso quadrinista espanhol deve estar se tornando um dos principais memorialistas contemporâneos de seu país. Pois é justamente a memória o fio condutor de Acasos do Destino e Regresso ao Éden, duas das melhores HQs de Paco Roca.

Natural de Valencia, Roca já tinha feito da memória o fio condutor de outras duas lindíssimas HQs lançadas no Brasil, A Casa (na qual um grupo de irmãos se reúne na velha casa em que cresceram, para discutir se devem ou não vende-la) e Rugas (protagonizada por um velhinho com Alzheimer). Ambas, contudo, tem um caráter mais intimista, lidando com questões pessoais dos personagens.

Acasos do Destino e Regresso ao Éden se diferem destas outras duas por abordarem questões mais “macro” relativas à Espanha – mesmo que partindo de memórias individuais, para daí abraçar “o todo” da questão central.

Em Regresso..., Roca faz uma biografia da sua própria mãe, Antonia, a partir da única foto de família que ela guardou. Mas ao ler a HQ, vemos que, mais do que a história de sua mãe / família, o que Roca quer mesmo falar é da condição da mulher espanhola de baixa renda na ditadura fascista de Francisco Franco.

Já em Acasos do Destino acompanhamos o próprio Roca em uma incursão à França, onde entra em contato com o conterrâneo Miguel, veterano de duas guerras (a Civil espanhola e a Segunda Mundial), para que este lhe conte sua trajetória. A princípio relutante, o velhinho acaba cedendo e relatando seu heroico périplo – desde a fuga da Espanha em 1939, após a derrota dos Republicanos contra os fascistas de Franco, passando pelo seu alistamento na Legião Estrangeira para atuar na resistência francesa até a entrada triunfal na Champs-Élysées, liderando o desfile da vitória no dia 26 de agosto de 1944.

A ironia suprema: a divisão de Miguel, a lendária La Nueve, a primeira a entrar na Paris libertada, foi praticamente apagada da história. Razão? Eram espanhois. Pior ainda: eram... “comunistas”, afinal, combatiam o fascismo.

Bonitas e moldáveis

Possivelmente o mais atuante tradutor de HQs no Brasil hoje – e uma biblioteca ambulante da memória das HQs – , o gaúcho Érico Assis observa que Roca “encontrou seu filão quando embarcou nesta questão da memória. Foi com Rugas, justamente um meta-quadrinho sobre memória. Fora o sucesso comercial e de crítica, me parece que Roca se viu à vontade para explorar melhor essa questão em quase todos seus trabalhos que vieram depois”.

Para Assis, memórias não são – nem devem ser – 100% confiáveis. E é aí que entra a beleza imensa das HQs do espanhol: “Tem uma característica do Roca que acho essencial: para ele, você não vai ‘cavoucar’ a memória (adorei seu verbo) e encontrar um relato jornalístico, exato, sério, conciso. Você vai encontrar incongruências, fantasias, dramatizações do que pode ter sido banal e, quem sabe, até mentiras, misturadas ao que aconteceu, talvez, de fato”.

“E Roca não é o jornalista exato, sério e conciso; como mostram Regresso ao Éden, Acasos do Destino e A Casa – nem um "autobiógrafo" exato. Ele quer retratar justamente essa bagunça bonita que são as memórias. É plástico nos dois sentidos: as memórias são bonitas e são moldáveis”, percebe o tradutor.

É importante também notar que Roca não “nasceu” pronto, como o artista que é hoje. Antes, ele ralou muito fazendo quadrinhos mais comerciais. “A prática aperfeiçoa o artista, e vejo que Roca desenhou e publicou muito antes de chegar nos trabalhos que conhecemos mais. Veja que ele passou mais de dez anos fazendo quadrinhos – eróticos, de aventura, fantasia – antes de chegar em Rugas, que é o início de sua fama”, conta Érico.

Ao longo das páginas de ambas as HQs – especialmente de Regresso... é possível notar que Roca é também um estudioso das técnicas de mestres dos quadrinhos como Will Eisner (Spirit, Um Contrato com Deus) e Chris Ware (Jimmy Corrigan, o menino mais esperto do mundo), mais contemporâneo.

“Eu diria que Will Eisner já está diluído em todos os quadrinhos, principalmente depois de ele publicar seus cursos de como fazer HQ. Quanto ao Chris Ware, não é uma referência que muitos usam, mas vejo que Roca é um dos que se alimenta, sim. Vi muito Ware naquele início e fim de Regresso ao Éden, muito parecido com o início e fim de Lint, de Ware (parte de Rusty Brown)”, conta Érico.

“O próprio Chris Ware diz que quadrinhos são uma arte da memória. Nunca entendi direito esta afirmação – por que outras artes não seriam da memória – mas ele elabora em entrevistas e textos. Tem a ver com as imagens serem estáticas e repetitivas, com pequenas mudanças (de quadro a quadro), e nossas memórias (e sonhos) também serem imagens estáticas da qual tiramos uma história, um sentido. Ou seja: não lembramos em cineminha nem em fotinhos, lembramos em quadrinhos. Talvez Roca, tal como Ware, tenha encontrado essa verdade maior sobre os quadrinhos e conseguiu colocar no papel, e por isso a gente goste tanto do que ele faz. Ou que eu e você gostamos”, conclui Érico.

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Tags:

Chris Ware espanha Franco memória Paco Roca Segunda Guerra Mundial Will Eisner

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