LITERATURA
Obra de escritora colombiana aborda a complexidade da natureza humana
Por Eduarda Uzêda

Perturbador, este livro A Cachorra, da colombiana Pilar Quintana, recém lançado este mês, pela editora Intrínseca. A autora premiada, que vem sendo considerada uma das mais relevantes representantes da literatura latino-americana atual, teve os direitos desta publicação vendidos para dez países.
Atração confirmada da 18ª edição da Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), que este ano, em função da pandemia da Covid-19, será realizada entre os dias 3 e 6 de dezembro (de maneira online), Pilar Quintana transporta a trama para a costa da Colômbia no Pacífico. Entretanto, o litoral focado na obra não é aquele idílico do imaginário coletivo, mas sim, a selva hostil e úmida, retrato de uma das regiões mais pobres deste país.
Neste local de natureza indômita e de oceano imprevisível e cheio de correntes – "Quando a maré estava baixa, a praia ficava imensa, um descampado de areia preta que mais parecia barro. Quando estava alta, a água a cobria por inteiro e as ondas traziam paus, ramos, sementes e folhas mortas da selva, que se misturavam com o lixo jogado pelas pessoas" – , de chuva incessante que alaga os barracos, de mosquitos que ferroam os nativos, de animais abandonados e frequentemente envenenados e de pessoas que reproduzem valores preconceituosos, se desenrola a história de Damaris.
Trata-se de uma mulher negra, gorda e pobre, casada, que perto dos 40 anos e, depois de várias tentativas frustadas de engravidar, se dá conta que não pode ter filhos. Ela, que trabalha como caseira de uma casa de veraneio da família Reyes e vive numa região de extrema pobreza – "o casebre em que moravam era de madeira e estava em mau estado. Quando caía uma tempestade, tremia com trovões e balançava com o vento, a água entrava pelas goteiras do teto e pelas frestas nas tábuas das paredes, tudo ficava frio e úmido (...)" – ainda convive com a pressão social pela maternidade, mais um fardo para a vida desta protagonista.
Yerma
Como na peça de teatro Yerma, do poeta espanhol Federico García Lorca (1898- 1936), escrita em 1934 e ambientada na Andaluzia, Damaris é uma espécie de Yerma moderna, que vive o drama de não poder conceber um filho e se sente inferorizada. Ela ocupa seus dias nas tarefas domesticas, tentando aliviar sua consciência por uma culpa do passado envolvendo um membro da família dos Reyes.
Depois de tentar tratamentos convencionais, Damaris resolve apelar para os tratamentos espirituais para conceber: "O jaibaná acompanhou Damaris por um longo tempo. Deu-lhe poções, lhe preparou banhos e incensos e a convidou para cerimônias nas quais a ungiu, a esfregou, a esfumaçou, rezou e cantou”...
"O verdadeiro tratamento consistia numa operação que faria em Damaris, sem abri-la por nenhuma parte, para limpar os caminhos que seu óvulo e o esperma de Rogelio deviam percorrer e para preparar o ventre que receberia o bebê. Era tudo muito caro e tiveram que economizar por um ano para poder pagar". Tudo em vão. É então que Damaris, frente à sua tragédia pessoal de infertilidade, decide adotar uma cachorrinha, filhote de uma ninhada, para superar a dor de uma maternidade frustrada.
O problema é que o animal não quer aceitar regras e, mesmo quando amarrado, consegue fugir e se embrenhar pela selva algumas vezes, deixando Damaris preocupada e muito esgotada, porque ela também tem que percorrer parte da floresta ameaçadora procurando a cachorra rebelde.
Abandono
A fuga do animal é uma ferida para a protagonista, que vive a dor e solidão do abandono desde muito nova. Quando criança, Damaris foi abandonada pelo pais e passa a ser criada pelos tios. Depois seu tio, que era sua figura paterna, a deixa. Também seu marido Rogelio passa muito tempo pescando e a larga muito tempo sozinha, sem companhia. Quando ela adota a cachorra e a cria cheia de mimos, espera a fidelidade e companhia, mas esta também a decepciona continuamente.
"Mas foi só voltar a confiar nela e relaxar um pouco a vigilância para que a cachorra fugisse. Desta vez ficou um dia e uma noite fora e daí em diante nada funcionou: nem amarrá-la por um mês inteiro, nem deixá-la solta o tempo todo, nem viver vigiando-a, parar de se preocupar com ela, tirar a comida como castigo, dar mais comida que de costume, tratá-la com dureza ou enchê-la de carinho. Na menor oportunidade, a cachorra ia embora e passava horas ou dias fora. Rogelio não fez comentários, mas Damaris ficava desconcertada ao imaginar que ele pudesse estar pensando “Eu avisei” (...).
Escrito na terceira pessoa, o livro de Pilar Quintana enfoca também, na trama de Damaris, o abandono e isolamento da população que vive longe, distante dos centros urbanos, bem como a violência que atinge os mais fracos, os velhos, as crianças, as mulheres e os animais.
O tema do racismo também está presente. O racismo estrutural que divide a sociedade entre os brancos bem sucedidos e negros com dificuldade de ascensão social. Não há uma discussão engajada sobre este problema, mas há um retrato bem realista neste enredo de uma sociedade dividida, onde os negros estão na base da pirâmide social.
Luz e sombra
O desfecho da obra traz uma reviravolta da trama que pode não agradar a todos os leitores, mas mostra uma autora que mostra a complexidade da natureza humana, com seus lados de sombra e luz. De luminosidade e escuridão.
Pilar Quintana, que escreveu obras como Coleconista de Polvos Raros e Coleção Iguana, além da escrita altamente imagética, tem o mérito de não desperdiçar palavras. Em A Cachorra, chama a atenção sua concisão e precisão, o que não é pouca coisa.

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