LITERATURA
Produção antológica de HQ é recuperada em edição de luxo

Por Chico Castro Jr.

Em outubro de 1985, uma revista de quadrinhos underground se materializou nas bancas de revista do Brasil. Como uma maçã proibida, ela transformou todos que provaram do seu sabor ácido - e dividiu a história do cartum brasileiro em antes e depois de si.
A revista era a Chiclete com Banana, pontapé inicial da produção em bancas da Circo Editorial, cuja história, fundamental para entender aquele período de redemocratização, é agora contada no livro "Humor Paulistano - A Experiência da Circo Editorial" (1984-1995).
Organizado por Toninho Mendes, editor-chefe da Circo, o volume em tamanho grande e papel cuchê recupera parte da produção antológica da Chiclete e das revistas que vieram a reboque do seu sucesso, como Geraldão (de Glauco Villas-Boas), Piratas do Tietê (de Laerte Coutinho) e Circo, com HQs de autores do Brasil e do mundo.
Cada capítulo conta com um texto de abertura que narra a trajetória de cada publicação, todos assinados por especialistas, como Ivan Finotti, Waldomiro Vergueiro (USP), Nobu Chinen (Faculdades Oswaldo Cruz), Paulo Ramos (Unifesp), etc.
Fazendo história em HQ
Em 11 anos, a Circo e suas revistas se tornaram mania entre jovens e adultos graças às provocações e a troça que faziam de conservadores, esquerdistas, igrejas, rock nacional, hippies, punks, burgueses, feministas, machistas, paulistas, cariocas, mineiros, baianos, presidentes - de qualquer um.
Para isso, recorriam a tiras, HQs mais longas, fotonovelas, textos corridos - o que pintasse. Na memória, deixaram personagens inesquecíveis como Bob Cuspe, Rê Bordosa, Os Skrotinhos (Angeli), Piratas do Tietê, o Síndico, Os Gatos (Laerte), Geraldão, Doy Jorge e Casal Neuras (Glauco) entre vários outros.
"Esse livro é uma conquista", avalia Toninho Mendes. "É difícil uma geração tão recente ter a oportunidade de contar sua história como de fato foi", diz.
Além de contar a história de sua geração, o livro também serviu para Toninho desenvolver sua tese do humor paulistano - em oposição ao humor carioca, que "permeava o humor gráfico elaborado por artistas brasileiros desde o início do século 20 até os anos 1970", nota Toninho em texto assinado no livro com o professor Roberto Elísio dos Santos (USP).
"Até o fato do livro ter saído pela editora do Sesi-SP é muito significativo. Desfaz um pouco a aura underground da Circo. Porque eram revistas que iam para as bancas e vendiam muito. Todo tipo de gente lia. Artistas, médicos, advogados", conta.
A conclusão a que Toninho e Elísio chegam, no fim do livro, pode parecer pretensiosa, mas, para além dos revisionimos, é muito difícil de ser negada.
"A experiência da Circo Editorial e o surgimento do humor paulistano têm para a década de 1980 e as seguintes os mesmos peso e significado que O Pasquim teve para os anos 1960 e 70: são dois marcos decisivos na história da imprensa, do humor e das histórias em quadrinhos no Brasil", escrevem.
Um dos vetores criativos da Circo, Laerte conta que, na época, ele mesmo não tinha noção da importância do trabalho que realizavam: "Eu não tinha essa noção. O que me tomava era um sentimento de euforia por ter deixado de fazer vários trabalhos chatos e - graças ao Toninho Mendes - estar me dedicando à ficção em quadrinhos. Nunca achei que estávamos criando mais do que víamos ser produzido ali", diz, via email.
"Nem acho que esteja fazendo história hoje. Mas sempre estamos, não?", acrescenta.
Apesar de feliz com o resultado do livro, ele, como quase todo artista, não curte muito olhar para trás: "Acho ótimo e muito oportuno, mas, pessoalmente, ver trabalhos que já fiz me dá um não-sei-quê. Olhar pra frente, pra falar a verdade, me dá outro não-sei-quê. Difícil explicar. Prefiro olhar pra já".
Há cerca de dois anos, Laerte, como se sabe, decidiu desafiar a "cultura de gênero", passando a vestir-se de mulher e referindo-se a si mesmo no feminino, como se vê nessa reflexão sobre a influência de sua geração.
"As influências sempre são cumulativas. Nossa geração ainda está em atividade; até mesmo em movimento, em transformação. Eu mesma estou acompanhando e me deixando seduzir pelo trabalho de jovens autores, ou por aquilo que os seduz hoje, em trabalhos de todas as partes do mundo", afirma.
"Vejo muito mais jovens que se influenciaram pelo grafismo do Angeli (do que por mim). De todo modo, acho que você tem razão quanto a uma época que foi marcante. Fico feliz de ter feito o que fiz", diz.
"Foram quase 8 mil páginas de HQs, fotonovelas e porralouquice em revistas feitas com muito suor, sangue, cocaína, cerveja, sexo e tesão, em um período em que o Brasil teve cinco moedas diferentes. Não é um livro chapa branca. É tarja preta", conclui Toninho.
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