LITERATURA
Quadrinistas falam sobre a produção de HQs no Brasil e na Bahia
Por Bianca Carneiro*
Mero entretenimento para uns, meio de reflexão para outros, mas pura arte para todos. Adulto ou criança, que atire a primeira pedra quem nunca se debruçou sobre alguma revista em quadrinhos para folhear as suas páginas, cores, imagens e textos. Muita gente não sabe, mas o quadrinho é considerado a nona arte, e este sábado, 30, é Dia do Quadrinho Nacional, data dedicada a homenagear este que é um dos gêneros literários preferidos dos brasileiros.
A data não podia ser mais simbólica. Em 30 de janeiro de 1869, Angelo Agostini, italiano radicado no Brasil, publicou a primeira história em quadrinhos brasileira. A obra, denominada "As aventuras de Nhô-Quim", ou "Impressões de uma viagem à corte", conquistou espaço na revista Vida Fluminense e abriu espaço para que a arte ganhasse força - de acordo com a pesquisa Retratos da Leitura, publicada em 2019 pelo Instituto Pró-Livro, os gibis agradam entre 13% e 29% dos leitores do país.
De Maurício de Sousa a Marcello Quintanilha, no Brasil, o que não falta são grandes nomes no quadrinho, e claro, a Bahia está inserida neste contexto como berço da criatividade de vários. Hugo Canuto é um deles. Natural de Salvador, o também roteirista fez bastante sucesso com o "Contos dos Orixás". O livro, que transforma divindades africanas em super-heróis, foi um dos finalistas do Jabuti 2020, o mais tradicional prêmio literário do país.
“Contos dos Orixás surgiu a partir de uma convergência de paixões. A primeira delas, pelo legado das civilizações africanas, como a Iorubá, que moldaram minha terra de origem, a Bahia, repletas de tradições ancestrais, representadas aqui pelas histórias dos orixás, arquétipos milenares de força, coragem, sabedoria e beleza”, explica Hugo, que acumula em seu currículo artístico, o legado de participação na Comic Con Experience (CCXP), um dos mais importantes eventos de cultura pop do mundo.
Outro que leva a ancestralidade e a negritude para suas páginas é Marcelo Lima. O feirense, que trabalha com quadrinhos e audiovisual, é autor de “Lucas da Vila de Sant’Anna da Feira”, HQ sobre o histórico Lucas da Feira, líder e cangaceiro negro que atuou nos arredores da cidade de Feira de Santana. Ainda tendo a “princesa do Sertão” como cenário, Marcelo adaptou do jornalista Muniz Sodré o livro “O bicho que chegou a Feira” e ganhou um prêmio literário da prefeitura de Salvador, em 2017.
“No campo dos quadrinhos eu tenho explorado muito as narrativas afrocentradas e essa busca por ancestralidade, discussão da formação identitária. Fora um pouco da curva, tenho um quadrinho chamado ‘O quarto ao lado’, que vai discutir a formação identitária da sexualidade. São temas mais realistas, mais pé no chão, misturando um pouco com algumas doses de fantasia”, diz Marcelo.
O uso de elementos das características sociais e cultura local também podem ser vistos nas obras de Flávio Luiz, autor de quadrinhos como “Aú, o capoeirista”, “O Cabra”, “Jayne Mastodonte” e “Rota 66”. O baiano especialista em humor, é o quadrinista mais premiado do estado, sendo vencedor por duas vezes do Salão Internacional de Humor de Piracicaba, além de diversas edições do Prêmio HQMIX. Reconhecido internacionalmente, seus trabalhos fazem parte dos acervos de museus localizados em países como EUA e França.
Segundo Flávio, a visibilidade que conquistou começou com os quadrinhos de Aú. Na história, que se passa em Salvador, o jovem capoeirista enfrenta vilões ao lado do mico Licuri. Ele, que participa da CCXP desde a primeira edição, também teve presença confirmada no conceituado Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, no sudoeste da França. “São oportunidades imperdíveis de ter contato próximo com os leitores, mostrar a produção de algo que tem tanta dificuldade de ser valorizado nesse imenso país sendo autor independente e onde a cultura de HQ só recentemente passou a ser mais consumida e valorizada”, afirma.
Fora das páginas
Os autores baianos são unânimes em apontar que o Brasil ainda precisa desenvolver seu mercado de quadrinhos. Apesar da arte ser bastante apreciada pelo público e ter registrado crescimento nas vendas, falta investimento e incentivo para que os artistas produzam.
De acordo com a quadrinista e ilustradora Lila Cruz, tal cenário vai de encontro ao fato de que bons nomes não faltam no país. “Acho que temos muitos autores incríveis, mas que precisam ser valorizados, principalmente pelas editoras, porque a gente vive um momento terrível e muitas vezes, elas trazem artistas de fora ao invés de publicar de gente daqui”, lamenta.
Lila ressalta que o contexto é semelhante na Bahia. A soteropolitana, que mora em São Paulo capital há pouco mais de três anos, diz que o estado também não valoriza a produção de quadrinhos e considera isso desgastante para quem busca sobreviver da arte. “A gente tem muitos editais de arte, mas eu falo da cena mesmo, do grupo de artistas. Às vezes eu sinto que há uma valorização muito maior das artes plásticas do que dos quadrinhos, em Salvador, especificamente. Quando penso em voltar para Salvador, penso muito nisso”, conta.
“Se há dificuldade de ter um mercado nacional, a ideia de um mercado na Bahia é praticamente nula no sentido de que você não tem editora investindo em quadrinho baiano e quando tem, é uma ou outra aventura, uma coisa muito isolada. Você não tem uma produção constante, você tem autores independentes que fazem seus trabalhos, mas o que acontece, no fim das contas, é que a maior concentração de pessoas que gostam dos quadrinhos está fora da Bahia, ou mesmo tendo um grupo grande dentro da Bahia, a maior reunião é fora, nesses eventos como a Comic Con e o Festival de Quadrinhos de BH”, reflete Marcelo Lima.
Para Flávio Luiz, a saída para os autores pode estar nas plataformas de financiamento coletivo, programas de fomento e redes sociais. Segundo ele, ainda que o momento seja tenso, é possível apostar em uma farta produção, já que, com a popularidade das adaptações de super-herói em alta, nunca se produziu tanto. “Não sei se ‘dá pra viver’. Eu mesmo não desisti ainda (risos), mas quem entra nesse ramo esperando ficar rico não terá grandes retornos imediatos. Mesmo na Europa, onde isso era possível ‘para nossos padrões', não está sendo fácil”, afirma.
Por fim, Hugo Canuto aconselha que os artistas aproveitem as ferramentas disponíveis para mostrarem os trabalhos, interagirem com o público e ampliarem suas redes. Ele diz que a cada ano observa uma maior presença de novos talentos, assim como uma organização dos criadores nordestinos para fortalecer a cena. Sobre a Bahia, Canuto ressalta que há um longo caminho até este fortalecimento, mas que a seleção de “Contos dos Orixás” pelo Jabuti mostra que é possível sim construir um trabalho com alcance internacional, falando a partir do local, de Salvador.
“Desejo que outros artistas sigam nesse caminho e contem suas próprias histórias, por isso busco contribuir através de palestras e oficinas gratuitas que promovo desde 2017, em parceria com instituições culturais e universidades”, afirma.
E nas próximas edições…
Embora a pandemia tenha prejudicado diversas áreas do entretenimento, os quatro quadrinistas baianos afirmaram ao Portal A TARDE que continuaram trabalhando remotamente, sem maiores prejuízos. Para Lila Cruz, o período em casa fez com que ela exercesse ainda mais a criatividade, ao usar as tirinhas que produz para aliviar as tensões vividas no próprio cotidiano. O resultado pode ser conferido na série de quadrinhos divulgada em seu perfil do Instagram.
“Costumo abordar muito saúde mental, cotidiano, piadas sobre a própria vida. Meus quadrinhos também são formas de eu chegar a conclusões sobre coisas, resumir coisas da minha vida”, afirma a quadrinista que também ilustra livros, campanhas, revistas e possui loja virtual das obras autorais.
Que o Brasil adora uma boa história de super-herói, isso todo mundo já sabe - basta olhar as bilheterias astronômicas das adaptações cinematográficas das HQs de Marvel e DC - porém, Lila acredita que a tendência é que os quadrinistas continuem apostando cada vez mais em outros estilos ou que usem as histórias de super-herói para discutir questões sociais.
“Tá rolando um crescimento de busca por quadrinhos autobiográficos, romances gráficos, outras histórias. Eu vejo nos artistas brasileiros menos uma necessidade de fazer quadrinhos de super-heróis, mais uma necessidade de fazer quadrinhos sobre outras temáticas”, diz.
Flávio Luiz lembra que o quadrinho não é apenas “coisa de criança” e que o respeito aos diferentes estilos, seja politicamente correto, despretensioso ou não, é fundamental para a sobrevivência do meio.
“Cabe a cada um, fazedor ou consumidor, saber o que quer e o que lhe agrada. Eu mesmo adoro quadrinhos de puro entretenimento, mesmo ciente de que HQ é um meio que dá grandes resultados abordando temas sérios e profundos. Outros já preferem coisas mais pesadas, densas, profundas e não conseguem curtir material despretensioso”, diz. “Menos policiamento e julgamento ajuda na difusão de um maior número de trabalhos e reforça e fortalece o mercado”, completa.
“Em 2021 tenho o lançamento de 'Agente Sommos #3', o 'Esquadrão Fantasma', junto com o André Pacheco, e outro ainda sigiloso que estou terminando. Além disso, fico na esperança de lançar um encadernado do melhor da 'Rota 66'”, adianta.
Para 2021, Marcelo Lima conta que está envolvido com diversos projetos no audiovisual como animações, séries e filmes live action. Quanto aos quadrinhos, ele foi selecionado por um edital para produzir “Os afrofuturistas”, seu primeiro quadrinho voltado ao público infantil. “São garotos que recebem poderes de heróis negros como Dandara e Zumbi dos Palmares”, conta. “É uma mistura de afrofuturismo com Power Rangers e As Meninas Superpoderosas”, diverte-se. Ele também planeja fazer uma nova tiragem de “O bicho que veio da feira”.
Hugo destaca que a pandemia exigiu adaptação dos autores independentes já que a presença em eventos é fundamental para divulgação do trabalho e conexão com o público. “Em relação a produção, foi um tempo para desenvolver e amadurecer os próximos projetos, aprofundar o trabalho de pesquisa para os 'Contos dos Orixás' e trabalhar no segundo volume da série, assim como um outro projeto, a 'Canção de Mayrube', o qual desenvolvo há alguns anos e que, espero, em 2021 ser publicado”, enumera Canuto.
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