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A densidade de São Paulo na visão do Aláfia

Publicado quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017 às 16:18 h | Atualizado em 15/02/2017, 16:31 | Autor: Daniel Oliveira
O grupo paulistano faz trilha de amor e ódio por São Paulo
O grupo paulistano faz trilha de amor e ódio por São Paulo -

Um percurso sonoro, crítico e afetuoso por São Paulo. Abrindo os caminhos, o grupo paulistano Aláfia, que entrou em outubro de 2016 no estúdio da Red Bull, no Centro de São Paulo, para gravar o novo álbum – o terceiro do conjunto que mistura, entre outros estilos, funk, rap e ritmos afro-brasileiros. De início, a proposta era fazer uma obra que abordasse cada região da cidade inspiradora.

“Fui sentindo que isso poderia ser mecânico. Então peguei composições que tinham nascido de modo espontâneo. Não são coisas que surgiram para o disco. Tenho uma relação geográfica, geopolítica, fraternal e de amor com as quebradas. Eu sinto e animizo os lugares. E São Paulo é uma cidade bem densa”, explica Eduardo Brechó, produtor e diretor musical do disco SP Não é Sopa, do Aláfia, lançado na semana passada.

Ele, Xênia França e Jairo Pereira dividem os vocais do grupo, composto ainda por outros nove integrantes. Sucessor de Corpura (2015), em que o Aláfia segue a rota musical dos orixás do candomblé, o álbum novo tem muito de funk e rap, ao passo que preserva as fortes referências afro-brasileiras da banda.

Afirmação

“O que move o nosso trabalho atual é a mesma coisa desde o princípio. Somos artistas, fazemos música e o que nos juntou foi a preocupação social, como pessoas que querem agir. Temos um foco de combate ao genocídio da juventude negra e ao racismo, que é diário. E São Paulo tem as suas belezas, mas também o seu lado feio. Ela recebe e repele. A gente busca refletir sobre a cidade e nos autoafirmar”, diz Xênia, que é baiana e foi aprovada no Natura Musical para o registro do seu disco solo, que também deve ser lançado este ano.

Em SP Não é Sopa, o grupo buscou aprofundar a maturidade estética, já conquistada em Corpura. “Como o tema propõe, fizemos um som quase como uma trilha sonora para São Paulo. Buscamos esse refinamento”, conta. O grupo apresenta um posicionamento extremamente crítico à situação desigual da capital paulista. Fala de violência policial na abertura, homônima, da especulação imobiliária em Gentrificação e exalta a juventude da periferia em No Fluxo.

No trabalho, participa uma série de artistas da cena paulistana, como Raquel Virgínia e Assucena, da banda As Bahias e A Cozinha Mineira, em Mano E Mona, Fernando Ripol, do projeto Samba do Congo, em Agogô de 5 Bocas, e Luísa Maita, em Saracura. “São pessoas importantes e que fazem parte desses contextos que tratamos no disco”, fala Brechó.

As canções também podem ser contextualizadas no atual momento de São Paulo, em que o prefeito João Doria realiza ações de apagar grafites dos muros da cidade. “É uma identidade. O grafite é uma manifestação artística das periferias. É muito tosco, com tantas coisas urgentes, que deveriam ser prioridade, isso demonstra qual é o interesse dele ao administrar a cidade”, opina Xênia.

Assim, o Aláfia se impõe por meio da música como contraponto aos modelos de segregação social e racial e das políticas reforçadoras disso. “Para a gente é natural falar de racismo porque faz parte da nossa vivência. E pagamos algum preço por tratar desse assunto. Mas a gente está disposto, estamos na luta”, assegura Brechó.

Resenha: Aláfia dá passo sólido com SP Não é Sopa

O  Aláfia dá mais um passo sólido na sua discografia. Novamente conceitual, dessa vez com os olhares voltados para a cidade de São Paulo, as suas desigualdades e as idiossincrasias do seu povo. Com esse horizonte, o grupo realiza com êxito e clareza a sua narrativa em SP Não é Sopa, um retrato de amor e ódio da maior cidade da América Latina. 

As letras são contundentes e atravessam assuntos variados, de histórias dos bairros e a indústria da violência até a questão racial, a desigualdade e o crack. Musicalmente o trabalho também é forte. Reafirma as referências já apresentadas, como o funk, o rap e os ritmos afro-brasileiros, mantendo o bom acabamento da obra anterior. 

O single Liga Nas de Cem, divulgado em janeiro, já anunciava o que vinha. Um trap potente, ela é uma das faixas mais marcantes do trabalho.      

O funk São Paulo Não é Sopa é uma espécie de introdução do tema principal e  já traz questões, a exemplo do racismo institucional, que são aprofundadas depois. O disco continua com Mano e Mona,  um tanto repetitiva na letra, mas de arranjo eloquente.  No Fluxo, bastante percussiva, celebra a quebrada. Uma espécie de ode ao funk.           

A canção Gentrificação começa somente com a bela voz e a interpretação de Xênia França. As partes em que a cantora aparece em primeiro  plano se destacam no conjunto do álbum. Nos versos: “Condomínio atropela Cala, gela / Inda sob a passarela a sobra da sequela /  Onde a cara da tutela se borra e se mela / Mulecada sentinela sebo nas canela Picadilha na flanela ou estreia / nova cela”.    

Inspirada em uma jornada de Eduardo Brechó para encontrar o instrumento, Agogô de 5 Bocas é uma bela canção, daquelas em que a melodia e a letra juntas se potencializam. Isso num ritmo suingado, conectado com o samba. Mais lenta, Saracura tem a sensível participação de Luisa Maita e faz homenagem ao bairro de Bela Vista.

SP Não é Sopa tem também Peripatéticos, com metais marcantes, Extremo Sul, homenagem à Zona Sul da cidade, o poema representativo da temática Teu Mar Enche Meus Olhos, de Allan da Rosa, e O Primeiro Barulho, que fecha o álbum com um agradecimento aos orixás “pela coragem que bate”.  

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