SOB A MIRA DA HOMOFOBIA
’Tom na Fazenda’ estreia nesta sexta em Salvador
Sucesso de público e crítica, peça fica em cartaz até domingo, 3, no Teatro Isba
Por Eugênio Afonso
O autor canadense Michel Marc Bouchard, na obra Tom à la Ferme, termina o prefácio do livro com a seguinte frase: “Homossexuais aprendem a mentir antes mesmo de aprender a amar”.
E é justamente baseada na obra de Bouchard – que já rendeu filme pelas mãos do diretor franco-canadense Xavier Dolan – que estreia nesta sexta-feira, 1º, às 20h, na reabertura do Teatro Isba (Ondina), fechado desde a pandemia, a peça Tom na Fazenda.
Em cartaz até o domingo, 3, o espetáculo, em turnê pelo Norte e Nordeste do País, teria somente duas sessões e estrearia amanhã, mas em função das vendas terem esgotado com impressionantes 15 dias de antecedência – uma vez que se trata de teatro –, a produção decidiu por uma sessão extra, justamente a de hoje.
O espetáculo conta a história de Tom, um jovem publicitário gay que perde o namorado em um acidente de moto. Então, ele decide viajar até a fazenda da família do companheiro, onde vai ser realizado o funeral. Ao chegar, encontra a mãe do falecido e descobre que ela não sabia da existência dele, e muito menos que o filho era gay.
Imerso nesse ambiente rural, Tom é envolvido em uma trama de mentiras criadas pelo cunhado, através de um jogo psicológico, físico e violento. A peça traz a sexualidade como ponto de partida para falar de homofobia, violência, desejo e seus silenciamentos.
Protagonista do espetáculo, o ator Armando Babaioff (da novela Segundo Sol) diz que a peça quer propor uma reflexão sobre o nosso tempo.
“Cada um vai fazer a sua leitura, de acordo com a própria história de vida. Eu conheço algum Tom? Eu já menti para proteger alguém? Já senti medo e desejo em ambiente hostil? Já me deparei com uma situação limite? Como me saí? As perguntas são infinitas e eu não sei se esse propósito é alcançado sempre, mas posso dizer que os relatos que recebemos nos fazem acreditar que sim”, observa Babaioff.
Premiado
Em cena desde 2017, quando estreou no Rio de Janeiro, o espetáculo – visto por mais de 60 mil pessoas em centenas de apresentações – já ganhou os prêmios de melhor ator para Gustavo Rodrigues, que vive o cunhado Francis, e melhor direção para Rodrigo Portella, na 30ª edição do Prêmio Shell de Teatro.
Segundo Armando Babaioff, que também é idealizador da peça e tradutor do texto, a construção da mentira é o grande mote de Tom na Fazenda. “Quando Tom chega e encontra Ágatha, a mãe do morto, ele se surpreende porque ela não sabe quem ele é. Não sabe que o filho era homossexual. Ela viveu anos pensando que ele tinha uma namorada na cidade. A mentira já existe muito antes da chegada dele. Tom entende rapidamente a situação”, explica o ator.
“E não desmente inicialmente por delicadeza, afinal é a véspera do funeral. E depois porque Francis, o filho mais velho, o ameaça com violência. Que é onde entra a homofobia, costurando os rumos dessa mentira. Imagina chegar para enterrar o namorado e imediatamente perder essa identidade? Deixar de ser companheiro, deixar de ser amor, deixar de ser gay”, complementa Babaioff.
Ele defende que é preciso montar espetáculos de temática homoafetiva para entender melhor os caminhos da sexualidade. “A única certeza que tive após a leitura (da obra de Bouchard) era de que eu precisava montar essa peça para refletir sobre a natureza das relações amorosas e familiares, os arranhões nas diferentes formas de enxergar o mundo, a perda da identidade, os efeitos devastadores de uma mentira, a homofobia na essência”.
Com quase 30 anos de carreira, Babaioff lembra ainda que os personagens gays já fazem parte do currículo. “Em 2010, fiz o Thalles em Ti Ti Ti (novela). No teatro, fiz Quietude (2001), uma releitura de Maurice, de E. M. Forster, e O que Você Mentir Eu Acredito (2013), baseado na obra de Caio Fernando Abreu, ambas dirigidas por Rodrigo Portella”. E arremata: “O processo de Tom na Fazenda foi tão intenso que tornou mais confortável conseguir me comunicar com um universo do qual eu também faço parte”.
Falsa namorada
Além dele, o elenco da montagem conta também com o ator Gustavo Rodrigues (Francis) e as atrizes Soraya Ravenle (Ágatha) e Camila Nhary, que vive Sara, a falsa namorada do morto.
“Ela topa ir até a fazenda para representar essa namorada a pedido do Tom, que quer agradar a mãe do falecido namorado. A personagem Helen, a “namorada” que foi inventada pelo irmão do falecido, não fala português, então ela é obrigada a usar seu parco e péssimo inglês para participar da trama, trazendo um alívio cômico para o espetáculo”, revela Nhary.
Para a atriz, existem muitas temáticas nessa peça. “A princípio se fala sobre homofobia, porém as outras camadas vão aparecendo. O que mais me toca é perceber o quanto a falta de diálogo, a mentira e o silêncio podem levar para um verdadeiro abismo, uma vida de total incompletude, de falta de liberdade e prazer”.
E por ter como foco central um relacionamento homossexual, tem gente que cria resistência para ver a peça como se ela só pudesse interessar a integrantes do universo LGBT+. No entanto, para assistir e até se reconhecer em Tom na Fazenda não é preciso ser gay. A peça fala, acima de tudo, sobre a hipocrisia dos relacionamentos humanos e familiares, questões pertinentes a todos.
“Eu acredito que preconceito deve ser combatido com informação. Quanto mais cedo houver informação, melhor esse indivíduo vai se adaptar ao mundo adulto. Com políticas públicas de inclusão, debate nas escolas, universidades, ampliando a discussão para a sociedade”, manda o recado, Babaioff.
Do Oiapoque ao Chuí
Ao longo destes seis anos, Tom na Fazenda ganhou bastante repercussão e notoriedade no Brasil e marcou presença no exterior no Festival de Avignon (França) e no FTA - Festival TransAmériques, em Montreal (Canadá).
Em função do grande sucesso de crítica, em março de 2023, a convite do Théâtre Paris-Villette, a peça realizou uma temporada de um mês em Paris. Chegou a receber elogios do jornal Le Monde. Atualmente, o espetáculo continua em temporada em São Paulo com o mesmo elenco, só que em dias e horários alternados para que possa também cumprir a turnê nacional.
Tom na Fazenda, em Salvador, é uma realização do Ministério da Cultura e da Vivo, através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, e conta com a produção do paraibano Flávio Marques, em parceria com a Fred Soares Produções.
Tom na Fazenda / 1º, 2 e 3 de setembro / hoje, amanhã, às 20h, e no domingo, às 19h / Teatro Isba / R$ 110 (inteira) e R$ 55 (meia) - vendas SYMPLA / 18 anos
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