TELEVISÃO
Filmes sobre Suzane Richthofen falham em acrescentar interesse ao seu rumoroso caso
Por João Gabriel Veiga*
Vez ou outra, cineastas tomam decisões criativas inusitadas para contar uma história simples. Em Amnésia (2001), Christopher Nolan bagunça completamente a linha do tempo para contar a trama de mistério sobre um homem que perde suas memórias. Até existe um corte que rearruma as cenas em ordem cronológica, mas é a narrativa “confusa” que torna esse filme ótimo. Já em Birdman (2014), Alejandro G. Iñarritu simula um plano-sequência do início ao fim da película para emular a ansiedade sentida pelo protagonista.
Com a duologia A Menina Que Matou Os Pais e O Menino Que Matou Meus Pais, sobre o caso criminal de Suzane von Richthofen e lançada simultaneamente na Amazon Prime Video, o diretor Mauricio Eça prova que o contrário é possível: uma história interessante também pode ser completamente sabotada por uma decisão narrativa ousada.
À primeira vista, a abordagem é intrigante, e parece mirar em algo como Garota Exemplar (2014, David Fincher).
Cada “capítulo” conta um lado do relacionamento da infame Suzane von Richtofen com Daniel Cravinhos nos anos que precedem o assassinato de seus pais, tomando a perspectiva de uma das metades desse casal Bonnie & Clyde paulista. Mas de onde exatamente os realizadores buscam inspiração para se colocar no lugar de duas das pessoas mais execradas do Brasil? É então que começa o pecado capital que afunda esse navio.
Essa odisseia do crime e da paixão avassaladora usa como guia apenas o testemunho dado por Suzane e Daniel ao júri momentos antes de serem sentenciados a 39 anos de prisão. Para reproduzir essas “perspectivas”, o roteiro se atém a reencenar passo a passo um depoimento dado quatro anos após o crime, provavelmente elaborado com a ajuda de advogados para tentar reduzir os danos e implorar por uma pena mais branda.
Ao invés de usar isso como um ponto inicial para desenvolver a subjetividade das personagens ou tecer algum comentário sobre a artificialidade das fabulações, Eça e companhia parecem não saber o que fazer para além do pitch de elevador do truque narrativo.
Limitar-se a recapitular os depoimentos dados pelos réus é um tiro no pé pois, enquanto narrativa, essas histórias são incrivelmente simplórias e desprovidas de qualquer nuance. É compreensível que assim o sejam pelo contexto no qual foram contadas, mas um cineasta competente perceberia o desafio dessa estratégia.
O roteiro de Ilana Casoy e Raphael Montes, no entanto, recria fielmente o que é dito pelos acusados, sem interpretar, reimaginar ou questionar as lacunas do que é dito.
Malhação com Carrossel
O resultado são duas histórias rasas, com protagonistas unidimensionais — uma menina arrependida influenciada pelas drogas e um pobre coitado incapaz de se esquivar dos tentáculos da paixão —, diálogos extremamente forçados e situações mal desenvolvidas recheadas de sensacionalismo e melodrama barato. O caso real, que seria um bom filme sem a necessidade de um truque mal elaborado e que assombra o imaginário brasileiro desde 2002, tem seus detalhes e seu complexo elenco de personagens desperdiçados.
Enquanto Daniel Cravinhos rende um filme básico porém mais sóbrio, é em O Menino Que Matou Meus Pais (o lado de Suzane da história) que se revelam de maneira gritante as fraquezas desse projeto. Não por tomar o lado da mulher mais detestada do país, mas por falhar em transmitir quem ela é. Afundada em ilusões de grandeza e caracterizada por peritos criminais como narcisista e manipuladora, Suzane von Richtofen é a Norma Desmond (protagonista do clássico O Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder) do parricídio. Em seu depoimento, ela pinta uma tragédia com toques de Malhação, e defende que seu único crime foi amar demais. Há material em abundância para estudo de personagem rico ou uma sátira afiada.
Mesmo com dois “filmes”, pouco se sabe ou se imagina sobre a psicologia de Suzane. Em momento algum Eça, Casoy e Montes parecem ter interesse em explorar a mente por trás do teatro jurídico e midiático. Quem é a Suzane de verdade? Como realmente devia ser seu tórrido namoro com Daniel? O que leva alguém a orquestrar a morte dos pais? Que tipo de pessoa faria isso? São perguntas cruciais para nortear um filme sobre Suzane von Richtofen, mas o time de realizadores sequer esboça curiosidade sobre elas. Ter resposta definitiva não é importante, mas é necessário que o filme também pergunte isso.
Essa duologia, no entanto, possui algo de excepcional: a excepcionalmente fraca atuação de Carla Diaz, intérprete de Suzane. Assustadoramente caricata, as duas versões de sua Suzane são afetadas, exageradas e pouco convincentes enquanto ser humano. Seu olhar é vazio e robótico, e ela parece achar que é possível convencer como uma sociopata na base do grito. Sua composição cartunesca pertence ao outro filme de Eça: o infanto-juvenil Carrossel.
A Menina Que Matou Os Pais e O Menino Que Matou Meus Pais são as duas faces de uma moeda sem valor e propósito. O projeto repete um ciclo de obviedades, com um grau de superficialidade geralmente novelesco — apesar de isso ser injusto com folhetins como Verdades Secretas, que equilibram dilemas morais complexos com o melodrama e suspense. Suzane von Richtofen não ganhou nenhum centavo com os filmes, porém o público também não ganha nenhum minuto de insight ou sequer entretenimento.
Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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