CULTURA
’Dois Sertões’ apresenta um olhar filosófico acerca da labuta cinematográfica
Documentário é sobre o saudoso diretor baiano Geraldo Sarno
Por João Paulo Barreto*
Em 2020, o cineasta Geraldo Sarno lançou aquele que seria seu último filme, Sertânia, uma saga ao mesmo tempo sanguinolenta e filosófica sobre a trajetória de um jovem que escapa do massacre de Canudos e se torna, após ser levado ao sudeste, um militar. Ao retornar ao sertão, se une a um grupo de cangaceiros. Situado entre os delírios da passagem entre a vida e morte do menino órfão e o, agora homem, moribundo jagunço, Sertânia traz nesse rapaz, Antão, a trajetória do Viramundo, personagem central da filmografia de Sarno.
Dois Sertões, filme dos diretores Caio Resende e Fabiana Leite, aborda não somente a construção da obra-prima final de Sarno, mas se torna um análise da trajetória do diretor oriundo de Poções através de seu próprio olhar fílmico e filosófico. Nele, vemos o realizador falar sobre as influências da filosofia de Bergson e Nietzsche, nessa reflexão, pensamos em como Sertânia, com sua exuberância imagética e narrativa, reflete essa sua ligação.
Nas conversas com o cineasta, Caio Resende, co-diretor do documentário, pôde comprovar essa relação intrínseca e, em entrevista ao A TARDE, aprofunda essa análise. "Em Sertânia temos uma presença muito marcante das filosofias de Bergson e Nietzsche e, não de forma menor, também do pensamento de (Gilles) Deleuze. Se fosse para dizer o Sertânia em termos deleuzianos, eu diria que ele traz em si a marca das imagens-tempo. Explico: em Sertânia, temos uma personagem incapaz de agir diante das situações nas quais se insere. O Gavião não age, ele é um cangaceiro afamado – muito conhecido por sua valentia –, mas ele não consegue agir, ele está ferido e se depara com o intolerável. É o que Deleuze chamaria de colapso do sensório-motor. E esse colapso é uma das condições para um cinema de vidência, como é o caso do filme de Geraldo Sarno", explica Resende.
Trata-se de um aprofundamento tanto sobre a vida no aspecto existencial quanto sobre a labuta rotineira cinematográfica, na qual o saudoso cineasta baseou seus dias. E nesse olhar, um encontro com o próprio Neorrealismo do Cinema se dá. Caio aborda essa ideia trazida pela pesquisa e execução de Dois Sertões.
“Impossibilitadas de agir diante da realidade que as cerca, as personagens neorrealistas se deparam com situações óticas e sonoras puras, que extravasam qualquer possibilidade de resposta motora. O estímulo não se prolonga mais em resposta. Não há actantes. Já não há lugar para o hábito. Temos diante de nós personagens que vagueiam, entre a vertigem e o sonho, a caminho de nenhum lugar, em face de uma realidade que se faz de muitas formas intolerável, pela beleza ou pelo terror", pontua.
“isso é o que vemos em Stromboli (1950), de Rossellini, quando Karen (Ingrid Bergman), mergulha em um delírio de beleza, diante do terrível e inevitável vulcão prestes a explodir”, exemplifica.
Tal ponte entre Rossellini e Sarno se dá com o personagem de Vertim Moura. “O mesmo acontece com o Gavião de Sertânia. As situações em que ele se encontra, de muitas formas, extrapolam suas possibilidades de ação. E temos esse mergulho no tempo em que ele tenta a todo custo encontrar a figura do pai. Todavia, como em Bergson, entramos na seara de uma memória cósmica e impessoal, e o que vemos desabrochar da tela é o passado do próprio Brasil", salienta o Resende.
Sem talking heads
Dois Sertões traz essa construção de uma análise sobre a vida de Sarno a partir não de depoimentos, mas de uma vivência do próprio diretor. Assim, o filme de Resende e Leite não cai na armadilha de utilizar depoimentos em um formato de entrevistas, mas nos leva pelo próprio pensamento do diretor. E isso entrecortado por uma raiz cultural de representações oriundas desse sertão tão bem ilustrado pelas imagens e cantorias populares e regionais que o longa traz.
“Esse documentário passou por dois grandes momentos. Aquilo que pensávamos antes da morte do Geraldo e aquilo a que fomos forçados a pensar depois de sua partida. E embora o formato talkinghead nunca tivesse sido o caminho da nossa predileção, isso caiu por terra de vez, com a mudança drástica que a partida do Geraldo nos levou a tomar", explana.
“Passamos a buscar um filme mais vivo, com uma predisposição à cartografia, um desejo de ir junto, de criar um filme que se compusesse com os movimentos da experiência, interiorizado a esses movimentos. E não reconstituir o Geraldo a partir da fala de outras pessoas”, garante.
Ao visitar Geraldo pela óptica de Dois Sertões, é impossível não pensar na experiência sensorial de Sertânia. E quando nos reconectamos com seu derradeiro filme, a partir de suas próprias palavras e análise filosófica, esse impacto se torna ainda maior. Ainda referenciando o neorrealismo de Stromboli, Caio conclui essa riqueza do cinema trazido pelo diretor baiano.
“Geraldo vai além, pois não só a personagem tem seu aparelho sensório-motor danificado. O mesmo acontece com o próprio dispositivo cinematográfico, que racha e revela a equipe, o extracampo. O set se engasga e vemos com isso o desfile das imagens-lembrança de outros filmes, como se o próprio cinema também fosse uma espécie de memória universal. De alguma maneira, isso me diz que é necessário encontrar, também, algo de intolerável no fazer cinematográfico, seja uma beleza capaz de nos lançar numa direção inédita, seja a dor e a alegria de resistir e insistir em fazer cinema nas periferias do mundo, sem seguir o itinerário estético dominante”, finaliza Resende.
*O jornalista viajou a convite da Universo Produção.
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